O ministro disse, porém, que sobrecarregar a esfera penal com casos sobre o assunto ‘não é o caminho ideal’
A possibilidade de responsabilização penal do contribuinte que declara o ICMS, mas não o recolhe, foi tema de uma audiência pública realizada nessa segunda-feira (11/03) no Supremo Tribunal Federal (STF). O evento foi convocado pelo ministro Luís Roberto Barroso, que apesar de não ter adiantado seu voto deu algumas pistas sobre o seu posicionamento em relação ao tema.
O magistrado disse acreditar que não é correto sobrecarregar o sistema penal brasileiro, mas não agir na falta de recolhimento de tributos significa prejuízos aos cofres públicos e concorrência desleal. “Não é ser contra ou a favor de empresários, é que muitas vezes o comportamento de um empresário prejudica o outro empresário”, afirmou.
Barroso falou ainda que, em caso de eventual decisão em desfavor do contribuinte, o Supremo precisaria modular a aplicação da regra.
O tema do recolhimento do ICMS é tratado no RHC 163.334, que impugna decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) do ano passado que definiu que a prática configura crime tributário. Barroso explicou que convocou a audiência porque o assunto é de grande interesse para o país, e que seu intento é ouvir todos os lados para tomar uma decisão. Em fevereiro o ministro deu uma decisão em caráter liminar para retirar o recurso da pauta da 1ª Turma e determinar sua apreciação pelo Plenário. Ainda não há data para o julgamento.
“Na minha vida como juiz eu sempre procuro fazer o certo, e uma vez que a gente sabe o que é certo, basta ter a coragem moral de fazer. O difícil na vida é quando a gente não tem certeza do que é o certo. E por esta razão eu convoquei essa reunião”, disse Barroso nessa segunda-feira.
Inadimplência X sonegação
A audiência teve início com a fala dos advogados dos empresários que ajuizaram o HC, um casal de Santa Catarina. Segundo eles, muitas vezes os empresários não têm dinheiro para recolher o ICMS, e a legislação prioriza o pagamento dos salários dos trabalhadores antes de qualquer coisa. “O princípio é que a prioridade das empresas é pagar o salário. A partir do momento em que passar a ser crime a inadimplência tributária nós seremos obrigados a rever esse princípio”, disse o advogado Gustavo Amorim.
Tanto nas falas da defesa quanto nas das entidades representantes do comércio e da indústria foi defendido que o não recolhimento do ICMS declarado configura mera inadimplência, que deve ser cobrada pelo fisco, e não sonegação. Por isso a prática não deveria ser vista como crime.
Foi o que defendeu Alexandre Ramos, representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Ele disse ser “muito simplista” acreditar que todos os que declaram o ICMS e não o recolhem são sonegadores, ressaltando que os empresários estão passando por momentos difíceis e que o país está em crise. A federação atua como amicus curiae no RHC.
Do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e Serviço Móvel Celular e Pessoal, que também atuou como amigo da Corte, falou Odel Antun, que disse que a Justiça Penal só deve ser acionada em casos de fraude e sonegação. “Existe multa, ação civil, ação administrativa”, afirmou.
A última das entidades a falar foi a Associação Brasileira do Agronegócio, representada por Pedro Ivo Gricoli Iokoi. Segundo ele o não recolhimento não é sonegação e não se equipara à corrupção. Ele ainda criticou a complexidade tributária do Brasil. “Temos aqui uma multiplicidade de tributos que fazem um carnaval tributário”, falou.
O meio mais falido de cobrança
Do outro lado, representantes do Ministério Público alertaram para o prejuízo aos cofres públicos, apresentando dados da ineficácia da execução fiscal e argumentando que a sonegação tem sido substituída pelo não recolhimento após a declaração.
Foram à tribuna o representante do Ministério Público de Santa Catarina, Giovanni Andre Franzoni, e a subprocuradora-geral da República Cláudia Sampaio Marques. Franzoni citou o inciso 2 do artigo 2º da Lei 8.137/1990, que define como crime tributário “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Já a subprocuradora equiparou o não recolhimento à sonegação, e disse que, “em termos de lesividade social, ele é idêntico e não se distingue em nada da corrupção”.
A posição é similar à expressada pela representante da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, Luciana Oliveira. Ela deu destaque, em sua fala, ao prejuízo que o não recolhimento do ICMS declarado causa ao país, e falou da ineficácia dos meios de cobrança existentes. “O que resta ao Estado se não a execução fiscal? É o meio mais falido de cobrança de imposto que eu conheço”, falou, ressaltando que, com a legislação atual, “declarar e não pagar é um baita negócio”.
Por último falou o representante das Secretarias de Fazenda dos estados, Luiz Cláudio de Carvalho, atual secretário da Fazenda do Rio de Janeiro. Em sua manifestação ele destacou as iniciativas do fisco para valorizar os bons contribuintes, como o programa “Nos Conformes”, do estado de São Paulo, e a possibilidade de parcelamento de débitos em até 60 vezes. “Os valores decorrentes do recolhimento do ICMS são valores que, se adimplidos, trariam uma situação para as finanças do estados mais equilibrada”, argumentou.
O mais complexo do mundo
Barroso aproveitou algumas das sustentações para levantar questionamentos e fazer propostas. O ministro sugeriu a Antun, do Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e Serviço Móvel Celular e Pessoal, que o contribuinte que não recolher o ICMS declarado e for acionado na Justiça Penal tem o amplo direito de se explicar e se defender. “Ele pode até recorrer e pagar o tributo sem nenhuma penalidade. O que você acha dessa possibilidade?”, questionou o ministro ao advogado, que respondeu: “Entendo que já existe um ônus de ser processado, antes mesmo da sanção definitiva. Ônus de ser intimado, prestar esclarecimentos numa delegacia, ir a uma audiência”.
O ministro seguiu com os questionamentos, levantando pontos discutidos tanto pela defesa quanto pela acusação nas instâncias anteriores.
Barroso então argumentou que o não recolhimento do ICMS por algumas empresas traz vantagens indevidas e gera concorrência desleal. “Quando um comerciante recolhe adequadamente os seus tributos e o outro não o faz, você cria uma situação em que quem descumpre a lei tem uma vantagem competitiva sobre quem cumpre a lei. Portanto, não é ser contra ou a favor de empresários, é que muitas vezes o comportamento de um empresário prejudica o outro empresário”.
O ministro destacou ainda alguns dos argumentos trazidos por aqueles que são a favor da criminalização do não recolhimento do ICMS que foi declarado ao fisco. “Um dos argumentos que foram trazidos é que, em lugar de simplesmente sonegar e não declarar, os contribuintes passaram a declarar e não pagar, portanto transferiram um pouco o seu comportamento de descumprimento da lei de um espaço que era criminal para um espaço que esperam que não seja criminal”, falou Barroso.
O magistrado concluiu o encontro falando sobre o sistema tributário brasileiro, que ele considera “o mais complexo do mundo”. Por isso, para ele, “nenhuma análise relativa à questão fiscal deve ser indiferente à complexidade” do sistema.
“Acho que há uma imensa distorção no sistema que penso que os tributaristas também reconhecerão, que é essa ênfase no imposto sobre consumo. [O ICMS] é um tributo indireto, e eu e meu caseiro pagamos exatamente o mesmo tributo. Estamos todos de acordo quanto à injustiça do sistema”, disse o ministro.
“Acho que estaremos de acordo também que a exacerbação do direito penal talvez não seja um caminho ideal hoje, nas circunstâncias do Brasil. Por outro lado, acho que o bom negócio que muitas vezes é o não recolhimento tributário também é altamente detrimental para o país de uma maneira geral e a criação de vantagens competitivas para quem não é correto também não é uma situação desejável”, falou, dizendo que vai levar em conta todas as manifestações na hora de votar.
Reportagem publicada no JOTA.