Por Odel Antun e Nicole Mizrahi Dentes
O alcance do aniversário de quinze anos da Lei Maria da Penha trouxe inegável prestígio às enormes conquistas no campo do direito das mulheres, especialmente na esfera do Direito Criminal.
Agora, passados todos esses anos, é bastante nítido que os avanços se fizeram ainda mais concretos após um longo debate, especialmente travado no Legislativo, na criação de diversos projetos de lei prestados a assegurar e proteger os direitos femininos. E esses debates, mais do que responsáveis por trazer atenção às pautas feministas, ganham especial relevância no processo de aprimoramento técnico das medidas de garantia de direitos e de proteção das mulheres, por levantar questionamentos sobre as formas de torná-las eficazes, proporcionais e suficientes.
É com isso em mente que se traz à atenção a recente aprovação, pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 519/2020, que altera a Lei Maria da Penha, para permitir a prisão em flagrante de agressores que tenham sido filmados ou fotografados ao cometer crime de violência doméstica e familiar contra a mulher.
O Projeto, apresentado pelo deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), tem como justificativa um caso do início de 2020, exibido pela Rede Globo de Televisão, ocorrido na cidade de Blumenau/SC, em que um homem havia agredido sua esposa em meio a discussões relacionadas a processo de divórcio e, a despeito de o crime ter sido registrado em vídeo, não foi efetivada sua imediata prisão, por não ter a Autoridade Policial entendido pela configuração do estado de flagrante delito. Assim, para que casos análogos não mais se repetissem, o Projeto de Lei 519/2020 foi proposto, com o objetivo de permitir que, pela simples apresentação, à Polícia, de registros fotográficos ou em vídeo de violência doméstica e familiar contra a mulher, pudesse ser decretada a prisão em flagrante do agressor.
Do ponto de vista técnico, a ideia dessa nova figura legislativa é a de criar uma nova forma de “flagrante impróprio”, com aplicação exclusiva ao âmbito do micro sistema da Lei Maria da Penha.
O chamado “flagrante impróprio”, há muito incorporado às normas processuais penais brasileiras (art. 302, III, CPP), consiste na possibilidade de decretação da prisão, pelo reconhecimento do estado de flagrância, logo após o cometimento do crime – e não durante a prática delitiva (a que se dá o nome de “flagrante próprio”). É o caso, por exemplo, de pessoa encontrada em posse de aparelho celular que tenha sido, há poucas horas e ainda nas redondezas, roubado do proprietário ainda abalado pelo ocorrido, após perseguição policial.
A proposição do Projeto de Lei pretende que o art. 12 da Lei Maria da Penha passe a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os seguintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos no Código de Processo Penal:
(…) § 4.º Para os efeitos do art. 301 do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941, considera-se em flagrante delito o agressor que tenha sido filmado ou fotografado ao cometer crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, bastando, para a sua configuração, a entrega à autoridade policial, tão logo seja possível fazê-lo, dos respectivos registros”.
Para os olhos de leitor especializado ou profissional do ramo do Direito Penal, essa nova figura legislativa logo desperta diversas dúvidas acerca da sua parametrização e da forma como se dará a sua aplicação em situações práticas, ante a abrangência e – até – imprecisão dos seus termos.
Com efeito, são inevitáveis os questionamentos sobre a validade dos registros fotográficos ou em vídeo, que tenham sido capturados pelas próprias vítimas, especialmente pela possibilidade de edição; questionamentos sobre a espécie e a intensidade do ato de violência praticado, pois o Projeto não refere a capitulações determinadas; questionamentos, ainda, nos casos em que nos vídeos não apareça de forma clara a feição do agressor, já que, anteriormente a um trabalho mais acurado de perícia sobre a imagem, a autoridade policial poderá se ver estimulada a decretar uma prisão em flagrante sem mesmo identificar suficientemente a autoria delitiva.
Pior ainda: o requisito básico para se afirmar o estado de flagrância é a proximidade temporal do fato criminoso. Não há se falar em flagrante, quando a consumação do delito não é mais recente. Mesmo no “flagrante impróprio”, a lei processual vale-se de locuções adverbiais de tempo (“logo após”, “logo depois”) para manter respeitada a própria natureza jurídica do flagrante delito. Todavia, a redação do Projeto de Lei abandona as fórmulas clássicas, impondo à Autoridade Policial uma caracterização de estado de flagrância sem uma locução mais assertiva sobre a contemporaneidade do delito cometido, bastando a entrega do vídeo, “tão logo seja possível fazê-lo”.
Todas essas questões ainda se somam às críticas que já dominam os debates travados a respeito do conceito de “flagrante impróprio”, e das incertezas que o permeiam, pela própria dificuldade em estabelecer o estado de flagrância com clareza, além das dúvidas sobre a autoria da ação.
O Projeto de Lei 519/2020 e a mudança que pretende incorporar à Lei Maria da Penha hão de ser debatidos, também, sob a ótica da própria necessidade e do significado da implementação desse dispositivo legal.
Trocando em miúdos, a proposta legislativa em questão acaba por constituir uma espécie de “meio de prova com efeito vinculante” para a configuração do estado de flagrância, em casos de violência doméstica ou familiar contra a mulher. É dizer, segundo o texto do Projeto de Lei 519/2020, se demonstrada a violência, por meio de registros fotográficos ou em mídia, estará provado o estado de flagrante e, portanto, haverá de ser efetivada a prisão do agressor pela Autoridade Policial encarregada.
O ato decisório da autoridade que impõe a prisão em flagrante não pode estar vinculado a uma prova específica. Na verdade, nenhuma decisão, no processo penal, pode ser vinculada a uma determinada prova. Nem mesmo a confissão tem esse condão. No Direito Processual Penal, toda prova tem valor relativo e as circunstâncias do caso concreto definirão o quanto de certeza cada elemento traz para o processo decisório naquela situação específica.
A razão de ser da prisão em flagrante – decreto absolutamente drástico e excepcional em um sistema constitucional de presunção de inocência – é a percepção direta das provas que a autoridade policial tem condições de ter, no próprio momento da prática do delito, quando os elementos de convicção ainda estão em estado de efervescência. Mas, não pode a lei impor uma decisão à autoridade policial, elegendo uma “rainha das provas” pós-moderna: a imagem de foto e vídeo; e criando quase um ato administrativo vinculado no processo penal. A decisão de afirmação de uma situação de flagrância, assim como a prolação de uma sentença, só pode se basear em um conjunto de provas e numa análise das circunstâncias do caso concreto.
Não é de hoje que vemos o processo de criação de leis e de emendas legislativas fundado em mero casuísmo, não em séria análise técnica com uma linha político-criminal bem definida e identificável. Alterar o instituto da prisão em flagrante é coisa séria demais para se justificar em mera veiculação midiática de um caso em que percepções e decisões possivelmente equivocadas foram tomadas por uma autoridade policial.
Na melhor das hipóteses, buscando uma “boa intenção” no projeto, a prisão em flagrante delito nas hipóteses da proposta legislativa parece se prestar a evitar a ocorrência de um mal maior, caso em que a lei intervém para proteger a mulher da perpetuação da violência doméstica ou familiar. E essa finalidade, ainda que absolutamente válida e necessária, já constitui hipótese permissiva do instrumento da prisão preventiva, perfeitamente aplicável no âmbito da Lei Maria da Penha e, inclusive, amplamente utilizada no Brasil.
E, se não por essa motivação, pode-se supor que o Projeto de Lei 519/2020 se prestaria à antecipação da sanção que seria imposta ao agressor ao final de processo penal, o que, no Direito Processual Penal brasileiro, é incabível e inaceitável, exatamente pela impossibilidade de se responsabilizar alguém sem que antes tenha sido submetido ao devido processo legal, perante autoridade judiciária competente, sob a garantia do contraditório e da ampla defesa.
Não à toa, no último dia 12 de agosto, o Projeto de Lei 519/2020 recebeu um voto contrário, da deputada federal Áurea Carolina (PSOL/MG). Em suas razões, ela ressaltou exatamente essa interpretação retorcida atribuída ao instituto do flagrante impróprio pela proposta legislativa, da qual se destaca o seguinte excerto:
“Destaca-se que [o flagrante impróprio] trata-se de uma medida pré-cautelar com vistas a preparar, instrumentalizar uma futura medida cautelar, tratando de instrumento de investigação. Não devendo se confundir com uma forma de antecipação de pena, posto que sequer existe processo criminal, motivo pelo qual, ratificamos que graves violações de direitos humanos não se resolvem com violações de direitos fundamentais”.
E a deputada vai além, agora adentrando a questão da melhor aplicabilidade da prisão preventiva:
“Portanto, diante da ausência de evidências de que a descaracterização do flagrante corresponderá redução das violências de gênero, ratifica-se que o nosso ordenamento já prevê que para a indicação da fumaça do cometimento do crime, o instrumento legal é o pedido de prisão preventiva, para o qual é reconhecido qualquer meio de prova material que dê indícios sobre a existência do crime e a sua autoria”.
Independentemente dos acertos das ponderações da deputada Áurea Carolina, o Projeto de Lei 519/2020 já recebeu parecer favorável da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher e, agora, segue o rito de tramitação perante a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, para que, se aprovado, seja submetido à votação pelo Plenário da Câmara e, na sequência, enviado para sanção ou veto do Presidente da República.
Mas, até por isso, o debate acerca da pertinência e da eficácia da referida proposta é, sim, imprescindível, especialmente em um contexto de constante evolução das garantias e proteções aos direitos das mulheres, que merece nada menos do que medidas frutíferas e eficientes.
E, não menos importante, há de se sublinhar a flexibilidade exacerbada dada ao instituto do “flagrante impróprio” no Projeto de Lei 519/2020 – independentemente de ser ou não louvável motivação – e, portanto, da periculosidade do seu reflexo ou da possível herança que será deixada no Direito Penal Brasileiro, ao seu todo.
Há de haver, sempre, espaço para críticas a projetos legislativos que, tal como parece ser o caso do Projeto de Lei 519/2020, levantam a bandeira da luta pela proteção e garantia aos direitos das mulheres, mas que, além de não trazer medidas concretas e eficazes, invadem os limites de direitos constitucionais em geral, que a estrutura do processo penal fundamentalmente se presta a garantir.