Por Alvaro Augusto de Orione Souza e Manuela Abreu
Nas últimas décadas, o processo penal tem sido afetado pelo crescimento exponencial das demandas, o que tem levado a uma demora na resolução dos conflitos, bem como à sobrecarga e ineficiência do sistema.
Por essa razão, nota-se o crescente desenvolvimento daquilo que intitulamos justiça consensual/negocial, que é um método alternativo de resolução de conflitos que permite que as partes (acusação e defesa) barganhem um acordo para que a ação penal não se inicie.
No Brasil, temos como exemplos de justiça negocial a Transação Penal, a Suspensão Condicional do Processo e, aprovado mais recentemente, o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) criado pela Lei nº 13.964/2019, que ficou popularmente conhecida como “Pacote Anticrime”.
O Acordo de Não Persecução Penal permite que o Ministério Público celebre um acordo com o investigado por um crime sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima não seja superior a quatro anos de prisão, desde que preenchidos determinados requisitos legais, dentre eles a confissão formal do delito e a reparação do dano causado.
Caso esses requisitos sejam atendidos, o Ministério Público poderá celebrar o acordo de não persecução penal com o acusado potencial. O ANPP será necessariamente homologado pelo juiz e, cumpridas as condições acordadas, restará extinta a punibilidade do agente – na prática, exclui-se qualquer possibilidade de ele vir a ser criminalmente processado pelos fatos objeto do ANPP.
Dito isso, é inegável que o Acordo de Não Persecução Penal é cabível, em casos de crime fiscal. Os crimes contra a Ordem Tributária são delitos sem violência ou grave ameaça, e suas penas mínimas, via de regra, são inferiores a 4 anos. No entanto, desde a entrada em vigor do Pacote Anticrime, a celebração de ANPP em crimes tributários tem sido distorcida, pela aplicação equivocada que alguns órgãos do Ministério Público, país afora, têm pretendido dar ao requisito da reparação do dano causado.
Não raro, tem-se exigido, a título de reparação do dano, a quitação integral do tributo exigido pelo Estado, objeto da suposta “sonegação” – e aqui reside um problema de ordem não só jurídica, como lógica.
Isto porque, a quitação do débito fiscal antes do recebimento da denúncia é considerada uma causa extintiva da punibilidade, ou seja, a responsabilidade penal é afastada em razão do cumprimento da obrigação tributária, conforme prevê o artigo 9º, da Lei nº 10.684/2003, ou o artigo 83, § 2º da Lei 9.430/1996, com a redação dada pela Lei 12.382/2011.
Sendo assim, nos crimes fiscais, embora o artigo 28-A do Código de Processo Penal exija a reparação do dano para o ANPP, não seria lógico exigir do imputado o pagamento integral do tributo supostamente devido. Afinal, se o ressarcimento ao fisco já leva, mesmo, à extinção da punibilidade, não faria nenhum sentido, para o sujeito, celebrar o Acordo de Não Persecução. Por quê?
Porque a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo é consequência legal livre de quaisquer outros ônus, enquanto a celebração do ANPP onera sensivelmente o sujeito celebrante. De início, porque uma vez celebrado um acordo, o indivíduo é proibido de se beneficiar novamente desse instituto, pelo prazo de 5 anos.
Mas, principalmente, porque o ANPP exige, além da reparação do dano, a confissão do crime, pelo agente. Além do inegável estigma moral, de se ver compelido a confessar um crime, essa confissão pode prejudicar a defesa cível do contribuinte, num eventual processo de Execução Fiscal. Poderia haver uma incompatibilidade entre a tese de defesa do contribuinte, na Execução, e a sua confissão, no processo crime. É verdade que, em teoria, o pagamento do tributo tornaria irrelevante essa contradição, pois extinguiria a pretensão de cobrança do Fisco – mas isso só é verdade se o processo de Execução for movido unicamente em razão das mesmas autuações fiscais objeto do procedimento criminal.
Como pode acontecer de haver descompasso entre as autuações fiscais enfeixadas no processo de Execução, e aquelas objeto da persecução penal, o contribuinte pode se ver na, no mínimo, incômoda situação de se defender das demais cobranças estatais, com a pecha de já se ter confessado um “sonegador”.
Portanto, há um problema lógico elementar, em se exigir o pagamento do tributo como condição do ANPP, quando esse mesmo pagamento já extinguiria a punibilidade, sem necessidade de o imputado se sujeitar às condições do Acordo. Mas esse não é o único impeditivo a que se exija a quitação do imposto, como condição para celebração do Acordo.
Existe um problema de ordem jurídica, nessa exigência: ela pode acabar por tornar proibitiva a celebração do acordo, para o arguido que tem desejo de aderir a uma solução negociada, mas não tem o poder de determinar a quitação do imposto.
Explica-se. Crimes contra a ordem tributária só podem ser imputados a pessoas físicas. No entanto, não raro o contribuinte de quem o Estado cobra o imposto é uma pessoa jurídica – de quem a indivíduo alvo da potencial persecução penal teria sido executivo, contador, funcionário, etc.
Ora, se o imputado criminalmente não for o atual tomador de decisões da PJ, a empresa pode se recusar ao pagamento do imposto devido, um imposto que muitas vezes as pessoas físicas não têm condição de adimplir – e nem deveriam, afinal não são elas os contribuintes, não foram elas que incorreram no fato gerador.
De mais a mais, ainda que o imputado na esfera criminal seja o contribuinte executado, na seara fiscal, é fato que o Fisco dispõe de todo um ferramental, para ver “reparado” o seu “dano”, inacessível à grande maioria das vítimas de crimes. O Estado pode, afinal, obter a satisfação do seu crédito por meio do Processo de Execução Fiscal, com todas as vantagens e prerrogativas de que a Fazenda Pública goza, em Juízo.
Nesse sentido, a jurisprudência reconhece que, nem mesmo nos casos em que o sujeito é processado e, ao final, condenado por crime de sonegação (uma das consequências legais genericamente previstas para a condenação criminal é o dever de repara o dano), seria razoável exigir-lhe o pagamento do imposto, como efeito dessa condenação, uma vez que o Fisco possui os meios adequados para a cobrança do valor devido, dispensando-se a intervenção do Direito Penal para esse fim:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. REPARAÇÃO DO DANO. ART. 387, IV DO CPP. AUSÊNCIA DE INSTRUÇÃO PROCESSUAL ESPECÍFICA. CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. FAZENDA PÚBLICA. COBRANÇA. AGRAVO DESPROVIDO.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que “a fixação de valor mínimo para reparação dos danos materiais causados pela infração exige, além de pedido expresso na inicial, a indicação de valor e instrução probatória específica, de modo a possibilitar ao réu o direito de defesa com a comprovação de inexistência de prejuízo a ser reparado ou a indicação de quantum diverso” (AgRg no REsp 1.724.625/RS, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 21/06/2018, DJe de 28/06/2018.) 2. No caso em comento, há pedido expresso na denúncia, mas não houve instrução probatória específica sobre o quantum apontado como devido.
3. Ressalte-se que, na hipótese em tela, já houve a constituição do crédito tributário, consubstanciado na Certidão de Dívida Ativa. Logo, não se faz necessária a fixação do valor mínimo à reparação do dano previsto no inciso IV do art. 387 do Código de Processo Penal, porquanto a Fazenda Pública já está devidamente aparelhada para a cobrança do montante que entende devido pelo contribuinte, mediante a propositura da respectiva execução fiscal.
4. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(AgRg no REsp 1844856/SC, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 18/05/2020)
É nesta mesma linha de raciocínio o parecer recém emitido pelo Ministério Público Federal em processo que tramita na 2ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Ji-Paraná/RO.
Naquele caso, o Parquet Federal ofereceu proposta de ANPP exigindo o pagamento do tributo supostamente sonegado pelo acusado. A defesa requereu a exclusão dessa condição para o firmamento do acordo, na medida em que o valor do imposto já era objeto de execução fiscal. O MPF, então, reviu seu posicionamento original e concordou com a impossibilidade de se exigir a reparação do dano como condição para o ANPP, afastando essa cláusula da proposta de acordo, conforme trecho abaixo:
“(…)
Em se tratando de crimes contra a ordem tributária, a constituição definitiva do crédito mostra-se suficiente para que a reparação do dano seja concretizada na esfera cível/fiscal. Desta forma, a elisão fiscal perpetrada em favor da pessoa jurídica poderá, de certa forma, ser apartada da atuação dos agentes pessoas físicas.
De outra sorte, a impossibilidade de se arcar de imediato com a reparação do dano, situação aventada pelos investigados, é hipótese apta a afastar a necessidade de observância da referida cláusula, nos termos do inciso I, do art. 28-A do CP.”
(Processo 0004061-22.2018.4.01.4101, 2ª Vara Criminal da Subseção Judiciária de Ji-Paraná/RO, parecer de 5/12/2022)
Ademais, os Tribunais vêm entendendo que nessas situações o magistrado não pode deixar de homologar o ANPP proposto pelo Ministério Público Federal, em razão da em ausência de cláusula de reparação do dano, pois as cláusulas do ANPP seriam prerrogativas do órgão ministerial, não sendo, os incisos do caput do artigo 28-A obrigatórios e necessariamente aplicados de forma cumulativa. Veja-se o acórdão:
“PENAL. CRIME TRIBUTÁRIO. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. CLÁUSULA DE REPARAÇÃO DO DANO. DESCABIMENTO. 1. O magistrado não pode deixar de homologar o acordo de não persecução penal proposto pelo Ministério Público Federal fundado em ausência de cláusula de reparação do dano. 2. As condições estabelecidas no acordo de não persecução penal são prerrogativas do Ministério Público, não sendo os incisos do caput do art. 28-A, necessariamente aplicados cumulativamente e obrigatórios, pois serão as circunstâncias fáticas que indicarão sua necessidade e adequação. 3. A inclusão da reparação de dano como condição para homologação do acordo, em sede de crime tributário, é medida que não se afeiçoa ao ordenamento jurídico, dada as peculiaridades deste tipo de criminalidade e a natureza (fiscal) do prejuízo, devendo prevalecer o acordo proposto originalmente pelo Ministério Público Federal. 4. Recurso em Sentido Estrito provido.”
(TRF-4, Recurso em Sentido Estrito nº 5011598-92.2021.4.04.7108, Relator CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, j. 13/10/2021, 8ª Turma)
Constata-se, portanto, que a inserção da obrigação de reparar o dano como requisito para o ANPP, em casos de delitos fiscais, não se coaduna, nem lógica nem juridicamente, com o ordenamento vigente, tendo em vista as especificidades inerentes a esse gênero de ilícito e a natureza intrinsecamente fiscal do prejuízo causado.
Desse modo, aos crimes fiscais deve ser dado, em se tratando de Acordo de Não Persecução Penal, um tratamento diferenciado, quanto à exigência de reparação do dano como condição para a celebração do Acordo. Do contrário, o efeito implícito da exigência acrítica dessa condição seria a subversão das finalidades do Direito Penal e do Processo Penal, que seriam convertidos em um mero mecanismo de cobrança de créditos tributários, em substituição aos meios e recursos já existentes e à disposição da Fazenda Pública para fazê-lo.
Artigo publicado no Conjur.