Por Alvaro Augusto Orione Souza e Alice Pereira Kok
No primeiro dia do mês de abril, o Presidente da República sancionou a Lei 14.133/2021 – também chamada de Nova Lei de Licitações -, a qual revoga e altera dispositivos da Lei 8.666/93, inclusive no que se refere aos crimes em licitações e contratos administrativos. O novo texto legislativo, que já está em vigor, não descartou por completo a antiga lei, mas buscou aperfeiçoá-la, trazendo maior transparência e eficácia para as licitações e contratos legislativos.
Embora tenha incorporado mudanças significativas, muitos juristas já apontam que a Lei é menos audaciosa do que poderia ser – considerando que a substituição da Lei 8.666/93 é uma promessa antiga -, tratando-se de mera atualização do aparato normativo já existente (1).
De forma geral, no que diz respeito às mudanças penais da Nova Lei de Licitações, buscou-se sistematizar os tipos penais previstos na Lei 8.666/93, a partir da inclusão de tais crimes em capítulo próprio do Código Penal (Capítulo II-B). Observa-se, também, maior recrudescimento legislativo – é dizer, praticamente todos os delitos tiveram as penas mínimas e máximas elevadas, bem como novas condutas foram tipificadas. No presente artigo, abordaremos, de maneira mais aprofundada, os delitos que sofreram alterações mais substanciais, quais sejam: (i) dispensa ilegal de licitação, (ii) fraude à licitação, e o novo crime de (iii) omissão grave de dado ou de informação por projetista.
Nesse contexto, a primeira mudança que pode ser apontada nos delitos licitatórios diz respeito ao crime de dispensa ilegal de licitação, anteriormente previsto no art. 89 da Lei 8.666/93 e, agora, disposto no art. 337-E do Código Penal, com o nome de contratação direta ilegal.
O caput do antigo art. 89 punia as condutas de “Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”. Os núcleos desse tipo (dispensar, inexigir, deixar de observar formalidade) acabavam por circunscrever a incidência do caput à conduta do agente público que contratasse sem licitação, fora das hipóteses legais.
Daí a necessidade do parágrafo único do artigo 89 (“Na mesma pena incorre aquele que, tendo comprovadamente concorrido para a consumação da ilegalidade, beneficiou-se da dispensa ou inexigibilidade ilegal, para celebrar contrato com o Poder Público”), que incriminava a conduta do particular contratado irregularmente sem licitação.
O novo art. 337-E do CP pune aquele que “admite, possibilita ou dá causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”. A nova redação, agora mais ampla e abrangente, concentra, num mesmo tipo, a punição tanto do agente público contratante, quanto do particular contratado sem o devido processo licitatório, afinal, ao menos os núcleos possibilitar e dar causa podem ser aplicados tanto a um como a outro, o que justifica a supressão do antigo parágrafo único.
Assim como o texto legal anterior, a atual redação do delito em questão se mantém como norma penal em branco, quando “somente se compreende o alcance da figura incriminadora consultando-se a parte extrapenal [da lei]” (2). Agora, as hipóteses nas quais é considerado dispensável o processo licitatório encontram-se no art. 75 da Lei 14.133/2021.
Ainda sobre o delito de dispensa ilegal de licitação, interessante observar que o STJ já, há muito, reconhecia a imprescindibilidade do dolo específico e do efetivo prejuízo ao erário para a configuração do tipo em apreço – muito embora tal exigência não constasse da redação da norma -, conforme divulgado no Informativo de Jurisprudência nº 494 daquele Tribunal:
DISPENSA DE LICITAÇÃO. AUSÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO E DANO AO ERÁRIO. A Corte Especial, por maioria, entendeu que o crime previsto no art. 89 da Lei n. 8.666/1993 exige dolo específico e efetivo dano ao erário. No caso concreto a prefeitura fracionou a contratação de serviços referentes à festa de carnaval na cidade, de forma que em cada um dos contratos realizados fosse dispensável a licitação. O Ministério Público não demonstrou a intenção da prefeita de violar as regras de licitação, tampouco foi constatado prejuízo à Fazenda Pública, motivos pelos quais a denúncia foi julgada improcedente (APn 480/MG, Rel. originária Min. Maria Thereza de Assis Moura, Rel. para acórdão Min. Cesar Asfor Rocha, julgado em 29/3/2012).
A nova lei, contudo, manteve-se silente quanto a tal requisito, o que pode, eventualmente, suscitar nova interpretação dos Tribunais pátrios sobre o tema.
Finalmente, o delito de dispensa ilegal de licitação também teve suas penas mínimas e máximas aumentadas significativamente. Antes, a punição era de 03 a 05 anos, agora, de 04 a 08 anos. Com isso, inclusive, impede-se a celebração de acordo de não persecução penal – inovação trazida pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime), inspirada no plea bargaining norte-americano, e aplicável apenas aos crimes cuja pena mínima seja inferior a 04 anos.
Outra mudança significativa resultante da promulgação da nova lei diz respeito ao crime de fraude à licitação. Houve a ampliação das condutas abrangidas pelo delito, uma vez que a prática coibida pelo novel art. 337-L, CP, agora, é a de “fraudar, em prejuízo da Administração Pública, licitação ou contrato dela decorrente” e, antes, a fraude abrangia apenas a “licitação instaurada para aquisição ou venda de bens ou mercadorias, ou contrato dela decorrente”.
Para além da maior abrangência do tipo, também foram aumentadas as penas mínima e máxima cominadas ao delito. Antes, o crime previa punição de 03 a 06 anos e, agora, de 04 a 08 anos – o que também resulta na impossibilidade de celebrar acordo de não persecução penal.
Excluiu-se, ademais, a hipótese de fraude à licitação apenas em razão da elevação arbitrária dos preços, prevista no antigo inciso I do art. 96 da Lei 8666/93. A nova legislação substituiu tal previsão pela criminalização da entrega de mercadoria ou prestação de serviços com qualidade ou em quantidade diversas das previstas – agora insculpida no inciso I do art. 337-L, CP -, direcionando o foco para a própria execução do contrato. A mudança, contudo, suscita muitas dúvidas práticas, especialmente no que diz respeito à forma de realizar, de maneira técnica e à margem de interpretações diversas, a avaliação da qualidade do produto ou serviço prestado.
Além disso, incluiu-se também como crime de fraude à licitação as hipóteses de fornecimento à Administração Pública, como verdadeiras ou perfeitas, de mercadorias inservíveis para consumo ou com prazo de validade vencido. O acréscimo, todavia, parece desnecessário, uma vez que a conduta já estaria abrangida pelo inciso V do art. 337-L: “[fraudar licitação mediante] qualquer meio fraudulento que torne injustamente mais onerosa para a Administração Pública a proposta ou a execução do contrato”.
Outro ponto de mudança na nova lei é relativo à criação de novo tipo penal, agora previsto no art. 337-O, CP: “Omitir, modificar ou entregar à Administração Pública levantamento cadastral ou condição de contorno em relevante dissonância com a realidade, em frustração ao caráter competitivo da licitação ou em detrimento da seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, em contratação para a elaboração de projeto básico, projeto executivo ou anteprojeto, em diálogo competitivo ou em procedimento de manifestação de interesse”, punível com reclusão de 06 meses a 3 anos, e multa. Caso o crime seja praticado com o fim de obter benefício – direto ou indireto, próprio ou de outrem -, aplica-se em dobro a pena prevista no caput, segundo redação expressa do parágrafo 2º.
A redação do tipo peca pela indeterminação da conduta incriminada, pois a sua definição, no caso concreto, vai depender do que se entenda por relevante dissonância com a realidade. Caberá, em última instância, ao operador da norma definir se eventual dissonância será relevante ou não, o que poderá dar margem a decisões conflitantes, ainda que em casos análogos, em prejuízo da segurança jurídica que se espera da norma penal.
Por seu parágrafo 1º, definiu-se “condição de contorno” como as informações e os levantamentos suficientes e necessários para a definição da solução de projeto e dos respectivos preços pelo licitante, o que também nos parece demasiado impreciso e suscetível à interpretação. Afinal, como avaliar própria e tecnicamente o que é “suficiente e necessário” para a solução de determinado projeto?
O objetivo do tipo penal em apreço é, por óbvio, coibir a omissão, modificação ou entrega dolosa de informações, à Administração Pública, relevantes ao processo licitatório, que estejam em desacordo com a realidade, mas ainda pairam dúvidas sobre qual conduta é, de fato, recriminada pela norma. Resta aos Tribunais, a partir de agora, uma análise mais detida, a fim de traçar as delimitações adequadas para as brechas legislativas.
Noutro giro, também se alterou a redação do artigo que dispõe sobre a pena de multa prevista para os crimes licitatórios. Com a nova lei, embora se tenha mantido a porcentagem mínima de 2% do valor do contrato licitado ou celebrado com contratação direta, excluiu-se o teto previsto para a multa cominada aos delitos dos arts. 337-E a 337-O, do CP, antes limitada a 5% do valor do contrato. Agora, a pena de multa aplicada aos delitos licitatórios se subsome à regra geral do Código Penal.
Como já mencionado, em relação às sanções cominadas aos tipos penais, observa-se que a nova lei aumentou significativamente a pena e previu regime inicial mais gravoso para praticamente todas as condutas criminalizadas – o que revela, sobremaneira, maior rigor empregado pelo legislador em seu âmago punitivista.
Ainda com relação às penas, por força do princípio da anterioridade, para as condutas anteriores à promulgação legislativa (1º/04/2021), nenhuma das alterações trazidas pela nova lei será cabível – a menos que em benefício do acusado -, devendo ser aplicados os preceitos previstos na antiga Lei 8.666/93. Contudo, fugindo à regra, tal entendimento não se aplica aos crimes continuados e permanentes, por força da Súmula 711 do STF, segundo a qual “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se sua vigência é anterior à cessão da continuidade ou da permanência”. Assim, usando como exemplo determinado caso de crime de fraude à licitação em contrato com o poder público que pressuponha prestações de serviço ou fornecimento de bens de maneira contínua, que tenha tido início antes da promulgação da Lei 14.133/21, mas ainda não tenha findado, aplicar-se-ão as penas atualmente previstas na Nova Lei de Licitações.
De forma geral, vê-se que, do ponto de vista penal, a lei trouxe significativas alterações, que merecem atenção. Incluiu-se os tipos em capítulo próprio do Código Penal e pôde-se observar um recrudescimento em quase todas as penas previstas para as condutas criminalizadas, além da criação de novo tipo penal incriminador (“omissão grave de dado ou de informação por projetista”), o que revela a gravidade conferida pelo legislador às condutas que envolvem contratações com o poder público. Agora, o olhar deve se voltar para o posicionamento dos Tribunais pátrios, que hão de interpretar e aplicar as inovações trazidas pela nova lei.
NOTAS
1 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-mar-27/arthur-pinel-lei-licitacoes-perda-chance> e <https://www.conjur.com.br/2021-abr-04/entrevista-rafael-valim-advogado-especialista-direito-publico>. Acesso em: 19/04/2021.