Por Equipe Antun Advogados Associados
Nos últimos meses, com o início e avanço da vacinação contra a Covid-19 no Brasil, muito se tem questionado acerca da criminalização de condutas como “furar” a fila, utilizando-se, por exemplo, de atestados médicos falsos ou oferecendo-se alguma vantagem econômica aos servidores responsáveis pela aplicação dos imunizantes.
Os inúmeros casos de cidadãos e servidores públicos que, de uma forma ou de outra, burlam a ordem de prioridade estabelecida pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) causam espanto. E como em grande parte dos acontecimentos que chocam a sociedade, uma das primeiras e mais comuns reações é cobrar uma resposta do Estado que possa se demonstrar mais eficaz a essas demandas. É justamente nesse contexto que muitos passam a pleitear a criminalização ou recrudescimento das penas já previstas para tais condutas. E é até em atenção a essa cobrança social que surgem os diversos projetos de lei para a criação de novos tipos penais para punir aqueles que transgridam a ordem pré-estabelecida de imunização.
Embora esse tipo de atitude seja moralmente reprovável, já existem mecanismos suficientes na nossa legislação para punir indivíduos que driblam a fila de vacinação contra o coronavírus, em prejuízo da ordem de prioridade estabelecida pelo Governo. É claro que a situação é inédita e ainda está sujeita a interpretação dos órgãos públicos e Poder Judiciário, mas ante às possibilidades criminosas já existentes no ordenamento brasileiro, é possível fazer um exercício de interpretação para se encontrar as correspondências devidas. Para tanto, diferentes fatores e pontos de vista serão levados em consideração neste artigo, especialmente tratando-se da qualidade daquele que incorre na conduta delituosa – se funcionário público, cidadão comum ou, até mesmo, médico que contribui para burlar o sistema de imunização.
Em primeiro lugar, há que se voltar os olhos à conduta do agente público que, de uma forma ou de outra, favorece terceiros em meio à ordem de vacinação. A título de exemplo, àquele que vacina pessoa não pertencente a determinado grupo prioritário que esteja recebendo o imunizante – seja em razão de comorbidade ou de idade -, pode ser aplicado o crime de prevaricação, previsto no art. 319 do Código Penal, e cuja conduta típica, bastante genérica, abrange a prática de realizar ato de ofício contrário à disposição expressa de lei, para “satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. A esse crime, aplica-se a pena de detenção, de três meses a um ano, e multa, reprimenda significativamente baixa que pode, inclusive, ser substituída por medidas alternativas a depender do caso concreto.
Além da prevaricação, ao menos outros três crimes são possivelmente incidentes à conduta, praticada por funcionário público, de burlar a ordem estabelecida para a vacinação: peculato (art. 312, CP), concussão (art. 316, CP) e corrupção passiva (art. 317, CP), todos com penas de reclusão, de dois a doze anos, e multa – penas consideravelmente mais altas do que aquela aplicada ao delito de prevaricação.
Incide no crime de peculato o agente público que, em proveito próprio ou de outra pessoa, desvia ou apropria-se de bem, público ou particular, de que tenha posse em função do cargo – ou, embora não tendo a posse do bem em questão, o subtrai, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário. Seria o caso, por exemplo, do agente público responsável pelo armazenamento de imunizantes, que decide se apropriar de algumas doses da vacina ou desviá-las, seja para seu próprio benefício, seja para o de outrem.
Necessário dizer que o supramencionado delito é classificado como crime próprio e, nessa condição, só podem desempenhá-lo ativamente aqueles que possuem a qualidade de funcionários públicos, ou aqueles expressamente equiparados a estes para fins penais, incluindo aqueles que, ainda que não desempenhem a função pública, contribuam para a prática criminosa. É o que nos leciona Bittencourt: “a condição especial funcionário público, no entanto, como elementar do crime de peculato, comunica-se ao particular que eventualmente concorra, na condição de coautor ou partícipe, para a prática do crime, nos termos da previsão do art. 30 do CP”[1].
O crime de corrupção passiva, por outro lado, previsto no art. 317 do Código Penal, é caracterizado pela solicitação ou aceite de vantagem indevida – ou promessa de tal vantagem -, em razão da função pública desempenhada, como, exemplificativamente, o funcionário que aceita vantagem econômica para imunizar pessoa não pertencente ao grupo prioritário para a vacinação. Embora a pena aplicável a este delito seja de reclusão, de dois a doze anos, e multa, pode ser majorada em um terço caso o crime seja cometido por funcionário público que deixa de praticar ato de ofício, ou infringe dever funcional. Contudo, a pena será significativamente mais branda, não ultrapassando o lapso de três meses a um ano, ou multa, caso o funcionário aja cedendo a pedido ou influência de outrem.
Noutro giro, o delito de concussão caracteriza-se no momento em que o funcionário exige, para si ou para outro, vantagem indevida em razão do cargo que ocupa. Este crime diferencia-se da corrupção passiva, na medida em que a concussão é uma exigência que causa temor de represálias, em função do cargo exercido pelo funcionário, em contraposição à mera solicitação ou aceite de vantagem de terceiro. Nas palavras de Bittencourt, “característica fundamental do crime de concussão é o abuso de autoridade, que pode repousar ‘na qualidade de funcionário’ ou na ‘função pública exercida’”[2]. A este crime, previsto no art. 316 do Código Penal Brasileiro, aplica-se a mesma pena prevista para o crime de corrupção passiva, de reclusão, de dois a doze anos, e multa.
Não fosse o suficiente, também há a possibilidade de responsabilização criminal do agente público que, ainda que não participe ativamente, contribua, indiretamente, para burlar a ordem prevista para a vacinação. Nesse contexto, o funcionário público que, por indulgência, deixa de responsabilizar o subordinado que cometeu infração no exercício do cargo, ou deixa de levar o fato ao conhecimento das autoridades competentes – por exemplo, o supervisor que, sabendo que o funcionário desvia vacinas, queda-se inerte -, pode, também, responder pelo delito de condescendência criminosa, previsto no art. 320 do Código Penal, e cuja pena aplicada é de detenção, de quinze dias a um mês, e multa.
De qualquer modo, o funcionário público que, por qualquer meio que seja, possibilita ou facilita que a fila da ordem prioritária de vacinação seja burlada, pode, também – e até antes da responsabilização criminal, considerando o direito penal como a ultima ratio –, responder por ato de improbidade administrativa.
Por outro lado, ao analisarmos situações de particular que burla a ordem estabelecida para imunizar-se, outras figuras criminosas previstas em nossa legislação podem ser aplicadas. Nesse contexto, o cidadão que oferece alguma vantagem econômica a funcionário público para ser vacinado, poderá ser processado por corrupção ativa, previsto no art. 333 do Código Penal, e cuja pena é de reclusão, de dois a doze anos, e multa. A pena pode, ainda, ser aumentada em um terço, caso o funcionário público corrompido pratique o ato infringindo dever funcional.
Se, no entanto, a imunização for feita mediante apresentação de atestado médico ou outro documento falso, é perfeitamente possível enquadrar o infrator nos crimes de uso de documento falso, falsidade documental, falsidade ideológica e/ou falsidade de atestado médico. Quando nos referimos a um “documento”, nos termos da Lei, faz-se necessário que contenha certos requisitos, quais sejam: a) forma escrita; b) autor determinado; c) conteúdo; e d) relevância jurídica. Ainda, segundo Luiz Regis Prado, a noção de documento apresenta três aspectos que compõem o núcleo dos crimes: “deve representar materialmente uma declaração de vontade humana; deve ser apto a provar aquilo que contém e deve possibilitar a identificação do emitente da declaração”[3].
É claro, ainda, que para que se perfaça o crime, deve-se ter em conta que a falsificação documental – seja ela qual for -, exige o mínimo de verossimilhança para consagrar o engodo e, consequentemente, prejudicar terceiros. Se, no entanto, da falsidade documental não decorrer qualquer prejuízo a outrem, não se verifica, prima facie, qualquer delito. É dizer: o documento precisa parecer verdadeiro, o que não seria o caso, por exemplo, de atestado médico redigido em papel sem timbre, com lápis de cor.
Nesse contexto, o art. 298 do Código Penal prevê a pena de reclusão, de um a cinco anos, e multa, para aqueles que falsificam, no todo ou em parte, documento particular, ou alteram documento particular verdadeiro.
Essa falsificação, por outro lado, pode ocorrer de maneira diversa. Caso o agente omita, em documento público ou particular, declaração que dele deveria constar, ou nele insira declaração falsa ou diversa da que deveria ser escrita, com o fim de alterar a verdade dos fatos, a pena aplicada é de reclusão de um a cinco anos, e multa, caso o documento seja público, e de reclusão, de um a três anos, e multa, se o documento for particular, conforme a redação do art. 299 do Código Penal. Neste crime, a pena é aumentada em um sexto, se o agente que o pratica for funcionário público e prevalece-se do cargo.
Necessário destacar, também, que o documento particular se diferencia do público na medida em que este último é aquele emitido ou elaborado por funcionário público, nesta qualidade e no exercício de sua atividade pública, com observância das formalidades legais. Nas palavras de Luiz Regis Prado, os documentos públicos emergem “como prolongamento do ente estatal, de modo que o Poder Público se apresenta como sujeito participante”[4].
Além disso, também não estão isentos de punição os médicos que forneçam atestados falsos. Nesse sentido, o art. 302 do Código Penal prevê a pena de detenção, de um mês a um ano, para o médico que cede ao paciente atestado falso, que indique, por exemplo, comorbidade não existente para que o agente possa se vacinar.
E, como não poderia deixar de ser, não apenas a falsificação de documentos é punível, como também a utilização de tais documentos não verdadeiros. Assim, se o agente fizer uso de quaisquer dos papéis falsificados ou alterados nas formas previamente descritas, comete o crime previsto no art. 304, do Código Penal, cuja pena é a mesma cominada à falsificação ou à alteração.
Conforme exposto nos parágrafos acima, nossa legislação já prevê diversos delitos – que podem, inclusive, em determinados casos, ser aplicados cumulativamente – para punir aqueles que transgridam a ordem pré-estabelecida no programa de imunização contra o coronavírus no Brasil. No entanto, também tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal diversas propostas legislativas que criminalizam, especificamente, a infração de plano de imunização, bem como o peculato de vacinas e a corrupção em plano de vacinação, em geral, atribuindo penas mais graves a tais condutas.
Destaca-se, nesse sentido, e a título de exemplificação, o PL 25/21 (https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8942915&ts=1624911580414&disposition=inline), inicialmente apresentado pelo Deputado Federal Fernando Rodolfo (PL/PE), já aprovado na Câmara e que, agora, precisa ser votado no Senado. O projeto, além de criar os crimes de “infração de plano de imunização” e de “corrupção em plano de imunização”, cria causa de aumento de pena no crime de “perigo para a vida ou saúde de outrem” quando realizado por simulação ou aplicação fraudulenta de vacina; e estabelece forma mais gravosa do crime de peculato para o caso em que a apropriação, o desvio ou a subtração for de bem ou insumo médico, terapêutico, sanitário, vacinal ou de imunização, público ou particular.
Para além do PL 25/21 – já aprovado na Câmara -, há outros diversos projetos cuja temática está circunscrita à pandemia do Coronavírus, como o PL 1667/21, que altera o Código Penal para tipificar criminalmente a conduta de aplicação falsa de vacina; o PL 1081/21, que modifica os arts. 155 e 157 do Código Penal, para especificar e incluir como causa de aumento de pena a subtração de vacina, insumo ou qualquer outro bem destinado ao enfrentamento de emergência de saúde pública; ou, ainda, o PL 15/21, em trâmite no Senado Federal, cuja redação é bastante ampla e criminaliza a conduta de burlar, por qualquer modo que seja, a ordem de vacinação estabelecida pelo poder público.
Tais projetos, dentre tantos outros, para além de buscarem atender ao anseio da população em ver responsabilizados aqueles que infringem a ordem do Programa Nacional de Imunização, visam, também, suprir as lacunas legislativas existentes em nosso ordenamento, uma vez que, embora possamos exercitar a interpretação para enquadrar diversas condutas nos tipos penais já existentes, fato é que nossa legislação não foi pensada para a situação que atualmente enfrentamos.
É preciso, contudo, atentar-se para o fato de que a criação de novos tipos, ainda mais quando já existentes mecanismos de punição, dificilmente é a melhor solução para o problema. Ainda assim, a “inflação legislativa”, para lembrar a expressão de René Ariel Dotti – ou a “legislação penal de emergência” (nas palavras de Sergio Moccia) – permanece como a principal resposta das autoridades estatais às demandas imediatas da população, em detrimento de um Direito Penal teleologicamente orientado a uma política criminal efetivamente refletida e amplamente debatida.
Certamente, mais céleres e efetivos seriam os investimentos em métodos preventivos voltados à orientação aos cidadãos e à imposição de regras mais claras e objetivas de estabelecimento de prioridades na ordem de vacinação, bem como na fiscalização e imposição de multas (com embasamento normativo não penal), para dissuadir e coibir práticas reprováveis e danosas à saúde pública.
A discussão entre qual seria a melhor solução ao problema que aqui se põe ganha especial relevância quando consideramos a costumeira morosidade na tramitação de projetos legislativos, por mais relevantes que sejam, ante o progressivo avanço da vacinação no país. Sim, pois, mais cedo ou mais tarde, com o avanço da campanha de imunização, a pandemia causada pelo coronavírus há de chegar ao fim, não podendo as (possíveis) novas leis criadas retroagir para atingir fatos pretéritos. Com isso, caso, de fato, as propostas legislativas pensadas para a situação emergencial na qual nos encontramos fossem aprovadas, não apenas não solucionaria o problema (que é imediato), como resultaria em um o sistema criminal avolumado com tipos penais inaproveitáveis para situações em que não haja uma pandemia mundial. Melhor seria, tendo em vista todo o contexto, investir os esforços em solidificar e aperfeiçoar os mecanismos de controle do que criar novos crimes.
NOTAS
[1] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Especial 5 – Dos Crimes Contra a Administração Pública. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 39.
[2] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – Parte Especial 5 – Dos Crimes Contra a Administração Pública. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 96.
[3] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial (Arts. 250 a 361), vol. 3. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. P. 366.
[4] PRADO, Luiz Regis. Tratado de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial (Arts. 250 a 361), vol. 3. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. P. 397.