Por Odel Antun e Miguel Katz Zagury Fragelli
No dia 30 de dezembro de 2021, foi sancionada a Lei 14.286/2022, o Novo Marco Legal do Câmbio. Tem como finalidade regular o mercado de câmbio brasileiro, o capital brasileiro no exterior e o capital estrangeiro no Brasil, de forma a modernizar e simplificar esse mercado, tornando-o mais eficiente.
Com isso, o mercado de câmbio brasileiro ficará alinhado com as disposições da maioria dos países integrantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Espera-se que, com a nova lei, possam ser reduzidos entraves na exportação e importação de bens e serviços e na circulação de capitais, tornando o Brasil mais atrativo para investimentos e permitindo uma maior integração do País com a economia global.
Embora o Novo Marco Legal do Câmbio tenha as finalidades descritas acima, também produzirá impactos penais e processuais penais, os quais serão analisados a seguir.
Dentre esses, está o artigo 14, § 1º, inciso I, da Lei 14.286/2022, que ampliou para U$ 10.000,00 (dez mil dólares) o limite de dinheiro em espécie que cada pessoa pode portar, sem ter de declarar, ao sair do ou entrar no Brasil. Anteriormente, esse limite estava estipulado em R$ 10.000,00 (dez mil reais), conforme o artigo 65, inciso I, da Lei 9.069/95.
Sendo assim, quantias que não excedam o valor atualmente estipulado não precisam mais ser declaradas às instituições que atuam no mercado de câmbio. Produz, logo, significativos impactos para a configuração do delito de evasão de divisas, quando praticado por meio do transporte, ao exterior, de valores em espécie, conduta enquadrada na primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, que criminaliza a ação de “quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior”.
Por conta da expressão “sem autorização legal”, esse delito é classificado como uma norma penal em branco, a qual necessita de complemento por meio de norma extrapenal para poder ter o seu sentido definido e, assim, ser aplicada [1]. Complemento, esse, que passa a ser dado pelo artigo 14, § 1º, inciso I, da Lei 14.286/2022.
Logo, apenas restará configurado o crime de evasão de divisas caso o montante não declarado seja superior a US$ 10.000,00, uma vez que, para valores inferiores, há clara autorização legal que desincumbe o agente da necessidade de declará-los.
Trata-se de alteração legislativa que beneficia os acusados da prática do crime aqui comentado e que, portanto, deve retroagir para atingir fatos anteriores à promulgação da legislação. Juarez Cirino dos Santos, por todos, leciona que “se o tipo de injusto não existe sem o complemento legal ou administrativo […] então o complemento é elemento do tipo de injusto e, na hipótese de complemento posterior mais favorável, retroativo”. [2]
Para isso, pouco importa que a Lei 14.286/2021 ainda esteja em período de vaccatio legis. Com efeito, essa lei, mais benéfica que a anterior, já existe para o ordenamento jurídico-penal e, dessa forma, deve ter eficácia imediata, sem nenhum obstáculo. [3]
A partir de um olhar mais amplo, verifica-se que o aumento do limite máximo para a não declaração de valores em espécie é mais uma medida adotada para desburocratizar o mercado de câmbio brasileiro – um dos objetivos do Novo Marco Legal – e que produzirá efeitos no delito de evasão de divisas.
Nesse sentido, em julho de 2020, foi adotada a Resolução 4841 do Conselho Monetário Nacional (CMN). Por essa, não precisam mais ser declarados ao Banco Central depósitos no exterior que sejam inferiores a US$ 1.000.000,00, valor superior ao antigo limite de US$ 100.000,00. Impacta, assim, na configuração do crime tipificado na parte final do parágrafo único da Lei 7.492/86 (“incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente”).
Naquele mesmo mês, também foi editada a Resolução 4844 do CMN que aumentou de R$ 10.000,00 para R$ 100.000,00 o limite mínimo para declaração de uma operação cambial no SISBACEN, afetando o aperfeiçoamento dos delitos previstos no caput (“efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País”) e na já citada primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86.
Portanto, os últimos anos têm sido marcados por uma nova política cambial, que visa à simplificação e desburocratização desse mercado, o que vem afetando a caracterização de todas as modalidades do delito de evasão de divisas.
Ainda sobre a configuração de delitos, o artigo 19 do Novo Marco Legal do Câmbio excluiu, de sua sistemática regulatória, as operações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie, no valor de até US$ 500,00 ou equivalente, realizadas no Brasil, de forma eventual e não profissional, por pessoas físicas.
Pois bem. Como se sabe, uma das formas de se praticar o crime previsto no artigo 16 da Lei 7.492/1986 (operação de instituição financeira ilegal) é a distribuição de valores de câmbio por meio de instituição financeira ilegal. Em razão disso, Rodrigo de Grandis, em precisa contribuição, constatou que a caracterização desse delito é afetada pelo mencionado dispositivo da lei cambial, pois as operações que menciona estão legalmente autorizadas. [4]
Assim, essas condutas são objetivamente atípicas. Por outro lado, defende que operações que excedam o valor de US$ 500,00, são enquadradas no tipo penal do artigo 16 da Lei 7.492/1986. E é aqui que temos uma pequena discordância.
Afinal, como ensina Cezar Roberto Bitencourt, esse delito é consumado “quando o agente pratica reiteradamente atividades próprias” [5] de instituição financeira. É necessário, assim, que ocorra uma reiteração de operações, de forma que uma única transação em valor superior ao de US$ 500,00 não pode, por si só, caracterizar esse delito.
Dessa forma, o limite estipulado pelo artigo 19 da Lei 14.286/2021 deve funcionar como um critério interpretativo para a tipicidade do crime do artigo 16 da Lei 7.492/1986 – e, nisso, deve retroagir tal qual o artigo 14, § 1º, inciso I, dessa nova lei -, mas não como um marco absoluto que defina a tipificação penal ou não, pois ainda há a exigência de que ocorram repetidas operações de câmbio, com aspecto de profissionalidade.
Ademais, os efeitos penais do Novo Marco Legal do Câmbio não ficam restritos à configuração de delitos econômicos. Em seu artigo 4º, § 1º, essa lei impõe, às instituições devidamente autorizadas a operar no mercado de câmbio, a obrigação de adotar medidas voltadas à prevenção da lavagem de capitais.
Trata-se de previsão legal que serve para acabar com qualquer dúvida que ainda pudesse restar sobre essas instituições serem “gatekeepers” de prevenção à lavagem, uma vez que essa conclusão já poderia ser extraída da leitura do artigo 9º, parágrafo único, inciso IX, da Lei nº 9.613/98. Dessa forma, fica claro que são obrigadas a adotar práticas a fim de se reduzir a possibilidade de que o mercado de câmbio seja utilizado para lavar capitais e, caso constatem alguma operação suspeita, têm o dever de comunicá-la às autoridades competentes.
Para além dessa obrigação preventiva, a Lei 14.286/2022 também exige que, ao realizarem correspondências bancárias internacionais, os bancos nacionais devem checar os controles internos de combate à lavagem de dinheiro que a instituição estrangeira possua. Impôs, assim, a necessidade de se realizar “due diligence” nessas situações.
Essas previsões, de grande importância, acabam por positivar a preocupação manifestada na Exposição de Motivos do projeto que resultou na lei ora comentada, de que a desburocratização do mercado de câmbio não abra uma porta para a sua utilização para fins de lavagem.
Por fim, o Novo Marco Legal do Câmbio também possui dispositivos que produzirão efeitos na esfera do processo penal. Isso porque a nova lei autoriza o Banco Central, quando for elaborar estatísticas macroeconômicas, a requerer informações dos residentes, as quais terão natureza sigilosa. Contudo, disciplina que, diante de requisições dessas informações que sejam formuladas para fins de apurações de crimes, o BACEN deve fornecer esses dados, mesmo que sejam sigilosos (artigo 11, caput e § 1º).
Soma-se, a esse dispositivo, o artigo 17 da nova lei, que autoriza o Banco Central a formalizar convênios com órgãos da administração pública federal para compartilhamento de informações referentes à área de cada órgão, devendo observar a legislação sobre sigilo bancário e fiscal. Há, assim, a possibilidade de que o BACEN firme convênio para compartilhamento de dados, por exemplo, com a Polícia Federal e, a partir de uma interpretação mais ampla, com o Ministério Público Federal.
Pelo emprego das expressões “requisição” e “convênio”, os artigos 11 e 17 passam a ideia de que essa comunicação de dados pode ocorrer diretamente entre o BACEN e a PF ou o MPF, ou seja, sem a necessidade de ser autorizada por decisão judicial. No entanto, referidos dispositivos devem ser interpretados não só à luz do quanto decidido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.055.941/SP, [6] mas, principalmente, da recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no RHC 83.477/SP. [7]
Diante do teor desses julgados, conclui-se que esses artigos permitem que o BACEN, munido dessas informações, tendo suspeitado da prática de algum delito, comunique diretamente os órgãos competentes para fins de investigação criminal. O que não se admite é o contrário: que esses órgãos, sem nenhuma autorização judicial, requisitem que o Banco Central forneça esses dados para instrução de investigações sem formalização e delimitação. Caso isso ocorra, estaremos diante de uma prova ilícita.
Por ora, esses são os efeitos mais perceptíveis do Novo Marco Legal do Câmbio no direito e no processo penal. Contudo, boa parte de suas disposições ainda será regulamentada pelo Banco Central e, com isso, novos impactos ainda podem surgir.
1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p.388-389.
2 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 51.
3 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, volume 1: parte geral. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2008 165-166
4 GRANDIS, Rodrigo de. Aspectos penais da nova Lei do Mercado de Câmbio. Disponível em: https://www.anpr.org.br/imprensa/artigos/26039-aspectos-penais-da-nova-lei-do-mercado-de-cambio. Acesso em 18/02/2022, 12h00.
5 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal econômico, volume 1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 385.
6 STF – RE 1.055.941/SP, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 04/12/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 06/10/2020.
7 STJ – RHC 83.474/SP, Relator: SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 09/02/2022: 3ª Seção; acórdão ainda não publicado.