Por Nicole Dentes e Ana Clara Santos
Não é novidade que a autodefesa é um dos direitos consagrados no sistema processual penal brasileiro, pela Constituição Federal de 1988, por especial influência de alguns tratados internacionais ratificados no Brasil – como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos[1] e o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional[2] – que sugerem a maior participação do acusado no curso do processo e, principalmente, na fase de produção de prova.
Não obstante, a aplicação por vezes “simplista” do direito de autodefesa, em um movimento verdadeiramente automático dos aplicadores do direito, a partir da mera sobreposição, ao caso concreto, de alguns critérios objetivos comumente adotados pela doutrina e pela jurisprudência, pode obstar a efetiva garantia do direito a inúmeros acusados.
Em verdade, não só no que diz respeito à autodefesa, mas a todos os direitos relacionados à proteção daqueles que enfrentam uma persecução penal, urge-se ter em mente que modelos pré-fabricados de prestação jurisdicional não se prestam a satisfazer o ideal democrático preceituado na constituinte.
É certo que, com o advento das tecnologias, e, ainda mais, diante das intempéries enfrentadas não só no Brasil, mas no mundo, com a pandemia do Covid-19, que exigiu o distanciamento social e, assim, instituiu definitivamente a prática de atos judiciais de forma remota, foi necessário que o tema da autodefesa fosse revisitado pelos aplicadores do direito, que precisaram repensar algumas das “fórmulas” comumente adotadas nos tribunais pátrios, em especial no que diz respeito ao interrogatório do réu.
À exemplo, exsurgiu debate sobre a possibilidade de comparecimento de réu foragido em audiência de instrução, debates e julgamento realizada por videoconferência (vide HC 2122291-02.2022.8.26.0000/TJSP e HC 214.916/STF). Afinal, sendo instituída a prática informatizada do ato, mediante presença remota de todas as partes, haveria razão para ser obstado o comparecimento do réu também pela forma remota, sobrepondo-se o ímpeto punitivo de fazer valer decreto de segregação preventiva do réu ao seu direito de ampla – e auto – defesa?
Na oportunidade dos mencionados julgamentos, os ilustres julgadores optaram por reafirmar a natureza predominantemente defensiva do interrogatório do réu, e, assim, consignaram que, havendo manifestação em sentido oposto, a condição de foragido não implica em renúncia tácita de participar dos atos instrutórios. Por fim, foi reconhecida a possibilidade de ser realizado interrogatório por videoconferência de pessoa foragida.
O posicionamento parece de todo acertado, afinal, como bem observado pelo Exmo. Ministro Edson Fachin, ao julgar o Habeas Corpus n. 214.916, “o processo penal deve ser instrumento a serviço da máxima eficácia das garantias constitucionais (LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p. 65), mormente do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, LV)”.
Aliás, a audiência de instrução, debates e julgamento é etapa processual bastante representativa do exercício da autodefesa. Ela é, essencialmente, o momento-chave da produção probatória, ocasião em que o acusado comparece fisicamente (agora, telepresencialmente) perante o juízo e o órgão acusador, sempre assessorado tecnicamente, para a inquirição das testemunhas do processo e para seu próprio interrogatório.
E, ainda, sabe-se que, pela doutrina processual penal brasileira, o interrogatório, por permitir o mais alto grau de manifestação verbal do acusado durante o processo, é considerado o ato processual mais importante da autodefesa[3], sendo o ato responsável por materializar o contraditório e permitir ao imputado contestar a acusação ou apresentar argumentos para se justificar[4].
Assim, para a satisfação da ampla defesa na audiência de instrução, debates e julgamento, o próprio acusado tem direito não só à assistência por defensor técnico, mas também ostenta a prerrogativa de estar presente durante a produção da prova, tudo a garantir que ele participe de todos os atos do processo a que responde, de forma a influenciar positivamente na formação de convencimento do juízo[5].
Mas o debate sobre a plenitude da autodefesa em audiência precisa ser expandido.
Antes de tudo, sob os corolários da ampla defesa e do contraditório, a participação do acusado há de ser ampla, plena e, principalmente, ativa. Rogério Lauria Tucci[6], já em 1993, ressaltava a profundidade do direito de defesa, ao dizer que “se deverá conceder ao ser humano enredado numa persecutio criminis todas as possibilidades de efetivação de ampla defesa, de sorte que ela se concretize em sua plenitude, com a participação ativa, e marcada pela contrariedade, em todos os atos do respectivo procedimento”.
O que significa dizer que essa participação é, de fato, ativa? Somente por se fazer presente em audiência, estaria o acusado garantido de sua prerrogativa de autodefesa, de fato? A nosso ver, não basta que o acusado participe de todos os atos do processo judicial movido em seu desfavor; é absolutamente necessário que lhe seja assegurada a possibilidade de participar ativamente dos atos do processo, de modo que seja sujeito na produção das provas que entende necessárias à sua defesa.
Nesse sentido, anota-se trecho de voto da Exma. Ministra Rosa Weber (HC 116.985/PE, Primeira Turma, DJe 10.04.2014): “E o devido processo legal é processo pautado no contraditório e na ampla defesa, no intuito de garantir aos acusados em geral o direito não só de participar do feito, mas também de fazê-lo de forma efetiva, com o poder de influenciar na formação da convicção do magistrado.”
Assim, para se evitar qualquer prejuízo ao acusado, assegurando-lhe a ampla defesa, é preciso que lhe sejam garantidas todas as condições necessárias para que possa participar ativamente, acompanhando a produção das provas no melhor de suas faculdades mentais, a fim de poder contribuir para com o exercício da defesa técnica.
Mesmo por isso, é de se chamar ao debate a imprescindibilidade de um estado psíquico saudável para que o acusado possa, efetivamente, desfrutar da sua prerrogativa de autodefesa, e exercê-la plenamente por todo o processo a que responde. Assim, toda e qualquer situação que comprometa a plena capacidade mental de um indivíduo deve ser alvo de atenção.
Não se está, aqui, a debater a situação dos indivíduos portadores de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto. Com efeito, para esses casos, em que há motivo justo para suspeita sobre a higidez mental definitiva do acusado, a legislação já previu procedimentos específicos (de eficácia e adequação questionáveis, por se dizer), inclusive com a necessidade de instauração de incidente de insanidade mental (artigos 149 a 154 do Código de Processo Penal).
Aqui, busca-se chamar à atenção a profundidade da discussão sobre o direito de defesa, sublinhando-se a necessidade de que a aplicação do princípio não seja encarada de forma mecânica. É essencial que a efetividade do direito constitucional seja garantida mediante análise pormenorizada das circunstâncias que envolvem cada caso. É preciso que se fale no aspecto subjetivo da autodefesa, de extrema relevância – a ponto de ser decisiva – para o pleno exercício da vontade do acusado, no âmbito do processo penal brasileiro.
Neste ponto, vale ressaltar que a discussão sobre a necessidade de se garantir a plena participação do acusado, não só em audiência, mas em todo processo penal deflagrado em seu desfavor, não deve ser encarada como algo excepcional. Em verdade, todo esse debate foi exaltado pela pandemia pelo Covid-19 que dominou o mundo e, especialmente, o Brasil, e, a partir de março de 2020, trouxe uma profunda mudança de paradigmas, a que se acostumou a chamar de “o novo normal”.
Com efeito, já se pôde debruçar sobre os efeitos da infecção pelo Covid-19, tendo ganhado bastante destaque, até por sua abrangência, as consequências psíquicas da contaminação pelo novo coronavírus, um fenômeno que inclusive ficou conhecido por “depressão pós Covid”[7]. Foram várias os pacientes que lidaram com os sintomas do coronavírus que necessitaram procurar psicoterapia regular e medicação especializada, por déficits cognitivos e transtornos psiquiátricos. Em geral, costuma-se apontar intensa perda de memória, transtorno de estresse pós traumático, ansiedade generalizada, dentre outros sintomas similares.
Com isso em mente, é de se questionar o quanto que uma pessoa, padecida de depressão profunda, lidando com sintomas seríssimos de perda de memória, instabilidade, distúrbios de sono e autoquestionamento, poderia, de fato, expressar-se de forma plena em situação de processo judicial a que responde pela prática de uma conduta criminosa, qualquer que seja ela.
São dois os pontos centrais da discussão sobre a plenitude da autodefesa em audiência de instrução, debates e julgamento: o primeiro, mais nítido, diz com a própria possibilidade de o acusado padecido de transtornos psicológicos comparecer participativamente no ato, exercendo sua defesa durante seu próprio interrogatório; o segundo, talvez até mais complexo, diz com a dificuldade de o acusado munir sua defesa técnica com fatos e evidências que a permitam representar seus interesses no ato, arguindo as testemunhas de defesa e de acusação ou de fundamentar suas próprias alegações finais.
Se o acusado não desfrutar de suas capacidades psíquicas, não terá ele meios de desfrutar do seu direito à ampla defesa e ao contraditório, com a plenitude que se espera, durante audiência judicial. E essa condição de efetivamente participar do processo – não só de corpo presente – é essencial à concretização do ideal constitucional da autodefesa.
A gravidade da discussão é nítida. A nova “realidade” apresentada pela imposição do distanciamento social na pandemia do Covid-19 afetou de modo tão intenso o estado emocional dos indivíduos em geral, que, a fim de aliviar sintomas como ansiedade, nervosismo, insônia, preocupação, medo, irritabilidade e dificuldade para relaxar, o consumo de bebidas alcoólicas teve crescimento de 93,3%[8].
E a maior procura pela substância causou, também, a elevação, em 40%, dos índices de dependência crônica de álcool, também conhecido como alcoolismo[9], transtorno que, por sua vez, é frequentemente associado à prática de crimes violentos, eis que o uso indiscriminado de bebidas alcoólicas afeta o córtex pré-frontal, parte do cérebro responsável pela moderação do comportamento[10].
Assim, envolve a questão da autodefesa, inclusive, saber até que ponto a situação de uma pessoa com quadro depressivo seria diferente daquela apresentada por dependente químico, que, no ato, esteja sob influência de substâncias psicoativas que comprometam sua perfeita compreensão da realidade. Afinal, em ambas as situações, sabe-se que o acusado não deteria, por completo, sua capacidade de autodeterminação.
Enfim, o presente artigo propõe-se a iniciar o debate sobre a plenitude do direito de defesa e, especialmente, sobre a relevância do seu aspecto subjetivo para que a participação do acusado nos atos do processo seja ampla e, acima de tudo, ativa. Aqui, não se pretende muito mais do que trazer a problemática à pauta, com a súplica de que os Tribunais Brasileiros passem a integrar o debate, com a seriedade que lhe é devida.
Afinal, como já dito, os avanços já vistos no processo penal brasileiro, pela implementação de ferramentas que melhor asseguram o exercício da autodefesa no mundo pós pandêmico, parecem ser apenas o primeiro passo de uma longa caminhada a fim de se alcançar a efetiva garantia do direito de autodefesa, em sua forma mais plena.
[1] “[é] direito do acusado defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com o seu defensor” (art. 8º, item 2, alínea b, primeira parte).
[2] “[…] o acusado terá direito a estar presente na audiência de julgamento e a defender-se a si próprio ou a ser assistido por um defensor da sua escolha […]” (art. 67, item 1, aliena d, primeira parte).
[3] PINHEIRO, Michel. A autodefesa Processual Penal: uma garantia fundamental do acusado. Fortaleza: Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/15685/1/2009_dis_mpinheiro.pdf. 2009. P. 104.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2006. p. 560.
[5] DENTI, Vittorio. La difesa come diritto e come garanzia. In: GREVI, Vittorio. (Org.). Il problema dell’autodifesa nel processo penale. Bologna: Zanichelli, 6ª ed., 1982, p. 48.
[6] in “Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro, ed. Saraiva, 1993, São Paulo, p. 205.
[7] Disponível em: https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/depressao-ansiedade-e-estresse-pos-covid/;
https://www.psitto.com.br/blog/depressao-pos-covid-o-que-e-e-como-lidar-com-ela/.
[8] Disponível em: https://pebmed.com.br/consumo-de-bebidas-alcoolicas-cresce-939-na-quarentena/#top.
[9] Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/07/01/alcoolismo-cresce-na-pandemia-qual-o-limite-entre-o-lazer-e-o-vicio.htm.
[10] Disponível em: https://link.springer.com/article/10.3758/s13415-017-0558-0.