Uma análise da derrubada do veto presencial ao art. 7º da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime) e a necessidade de revisitação do tema pela jurisprudência
Por Alice Kok e Nicole Mizrahi Dentes
Em matéria de prova penal, a captação ambiental ou gravação ambiental era comumente definida, pela jurisprudência, como a gravação de diálogo, feita por um dos próprios interlocutores, sem que o outro tivesse ciência de que estava sendo gravado.
Ainda segundo a jurisprudência firmada anteriormente à edição da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime), a captação ou gravação ambiental diferenciava-se da interceptação, na medida em que esta última constituía o registro de comunicação alheia sem o consentimento de nenhum dos interlocutores – assim como a interceptação telefônica executada pela autoridade policial, após autorização judicial; e da escuta, que é a captação de conversa por terceiro, com o consentimento de um dos comunicadores. A temática foi, recentemente, abordada no pacote anticrime, o qual trouxe alterações substanciais à Lei 9.296/96 – que regulamenta as modalidades de captação de comunicações.
Na referida lei, o legislador, inadvertidamente, passou a utilizar a expressão captação ambiental para se referir a toda gravação de sinais eletromagnéticos, seja ela feita por um dos interlocutores sem o consentimento dos demais – conforme conceito jurisprudencial -, seja ela executada, por exemplo, pela autoridade policial, após autorização judicial.
Seja como for, especificamente no que diz respeito à captação ambiental enquanto gravação de conversa, por um dos interlocutores, sem que o outro tenha conhecimento, muito se discute sobre a legalidade da medida ou, melhor, sobre a validade da prova obtida por tal meio. Questiona-se: é, afinal, admissível a prova obtida por tal meio? E, caso positivo, em que circunstâncias isso seria possível?
O presente artigo se propõe, então, a debater estes e outros questionamentos, tanto a partir do entendimento jurisprudencial firmado ao longo dos últimos anos, quanto, mais recentemente, da entrada em vigor da Lei 13.964/2019, também conhecida como “Pacote Anticrime”, que prevê, em seu art. 7º, a introdução do art. 8º-A, §4º, na Lei 9.296/96, instituindo a admissibilidade da captação ambiental apenas em matéria de defesa – ou seja, para beneficiar réu ou investigado – , conforme será analisado, com maior precisão, nas linhas abaixo.
Destaca-se, nesse contexto, que muito embora não houvesse clara disposição legislativa sobre a matéria, a captação de conversa, por um dos interlocutores, sem o conhecimento dos demais, foi, em diversas oportunidades, aceita pelos Tribunais Superiores – STJ e STF – como meio de prova, tanto em matéria de defesa, quanto de acusação, servindo, inclusive, para embasar condenações. As cortes destacavam a licitude da medida, sob a justificativa de que a disponibilização desse tipo de conteúdo, por partícipe da conversação, significaria tão somente dispor daquilo que também é seu.
Por muito tempo, esse foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, em 2008, ao negar provimento ao RE 402.717, interposto pelo Ministério Público Federal, assentou a licitude da prova obtida por gravação clandestina, feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. No caso analisado em sede de Recurso Extraordinário, o interlocutor responsável pela gravação era investigado em inquérito policial que apurava a prática do crime de corrupção de testemunhas (art. 343, CP) e gravou conversas que manteve com a suposta vítima, sem seu consentimento, requerendo, posteriormente, o aproveitamento da gravação para a composição do substrato probatório do caso. Diante disso, o Ministério Público Federal alegou que tal medida se equipararia à interceptação telefônica e “viola[ria] a garantia processual de proteção à intimidade, a qual somente pode ser afastada por autorização judicial”. O relator do recurso, Ministro Cezar Peluso, contudo, assentou que
“(…) não há ilicitude alguma no uso de gravação de conversação telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, com a intenção de produzir prova do intercurso, sobretudo para defesa própria em procedimento criminal, se não pese, contra tal divulgação, alguma específica razão jurídica de sigilo nem de reserva, como a que, por exemplo, decorra de relações profissionais ou ministeriais, de particular tutela da intimidade, ou doutro valor jurídico superior. A gravação aí é clandestina, mas não ilícita, nem ilícito é seu uso, em particular como meio de prova”.
O Ministro ressaltou, também e como já mencionado, que tal gravação não se equipararia à interceptação, na medida em que “quem revela conversa da qual foi partícipe, como emissor ou receptor, não intercepta, apenas dispõe do que também é seu e, portanto, não subtrai, como se fora terceiro, o sigilo à comunicação”. O mesmo entendimento foi replicado, depois, na Questão de Ordem em Recurso Extraordinário 583.937 e em muitas oportunidades posteriores.
Em ambos os casos, a Corte decidiu pela licitude desse tipo de prova em favor da defesa, mas na Questão de Ordem no Inquérito 2.116, por exemplo, julgada em 2011, a decisão favoreceu a acusação, para determinar o prosseguimento de investigações contra determinado agente detentor de prerrogativa de foro. Vencidos os Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio, o Pleno do STF assentou que “se qualquer dos interlocutores pode, em depoimento pessoal ou como testemunha, revelar o conteúdo de sua conversa, não há como reconhecer a ilicitude da prova decorrente da gravação ambiental”.
Já o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o habeas corpus 512.290, também se manifestou pela licitude de prova decorrente de gravação clandestina tomada por colaborador – e utilizada pela acusação -, amparando-se em precedentes do Supremo Tribunal Federal, sob a justificativa de que a legislação nunca delimitou que a captação ambiental somente seria lícita se utilizada em matéria de defesa, confira-se:
“O entendimento do Tribunal a quo não diverge do precedente do Supremo Tribunal Federal, exarado na QO-RG RE n. 583.937/RJ, de que, desde que não haja causa legal de sigilo, ‘é lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro’ (Tema 237). Na oportunidade, o Colegiado concluiu que a disponibilização de conteúdo de conversa por partícipe, emissor ou receptor, significaria apenas dispor daquilo que também é seu, sem que se possa falar em interceptação, sigilo de comunicação ou de intromissão furtiva em situação comunicativa. Não se delimitou que a gravação de conversa por um dos participantes do diálogo seria lícita somente se utilizada em defesa própria, nunca como meio de prova da acusação. Aliás, se adotarmos os argumentos da defesa, também seria inválido o depoimento de Manoel na fase judicial, como testemunha, a respeito do conteúdo da mesma comunicação? Penso que não”.
Mais recentemente, em 2018, a Primeira Turma do STF, em paradigmático precedente nos autos do Inquérito 4.506, recebeu denúncia por corrupção passiva e por tentativa de obstrução à investigação de organização criminal, reputando lícita a “gravação ambiental realizada por Joesley Batista, (…) na qual Aécio Neves da Cunha reitera a solicitação de dinheiro feita por sua irmã e combina a entrega de valores”.
No entendimento mais recente dos Tribunais superiores, portanto, a gravação clandestina poderia, sim, ser utilizada em qualquer hipótese, seja para instruir o argumento da acusação, seja para respaldar a defesa – desde que não dissesse respeito à captação de diálogos acobertados por sigilo, a exemplo de interação entre advogado e cliente –, já que uma prova não poderia ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiaria, sob risco de contrariar o interesse público.
Essa mesma justificativa foi utilizada, há poucos meses, pelo Presidente da República, ao vetar dispositivo da “Lei Anticrime” que incorporava a captação ambiental ao ordenamento processual brasileiro, já consignando, como requisito de admissibilidade, a possibilidade de utilização da prova obtida unicamente em matéria de defesa. Com efeito, o parágrafo 4º, do artigo 8º, da Lei 9.296/96, incorporada à legislação brasileira no final de 2019, restringe, textualmente, a possibilidade de se utilizar a captação ambiental, condicionando a licitude da prova obtida ao seu uso em matéria de defesa de investigados e réus em inquéritos e processos criminais. Verbis:
§ 4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.
Ao fazê-lo, o Presidente da República sublinhou, como justificativa das suas razões, que a limitação da utilização de prova obtida a partir de captação ambiental a apenas uma das partes do procedimento criminal – a defesa – seria inadmissível, por tratar diferentemente os sujeitos processuais, além de que, na sua visão, ainda que sem embasamento, implicaria em retrocessos no combate à criminalidade:
“(…) uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime”[1].
Todas essas considerações foram, porém, logo refutadas. Em abril desse ano, o Congresso derrubou alguns dos vetos presidenciais à “Lei Anticrime”, dentre os quais, o que recaía sobre o mencionado artigo, possibilitando a reativação da sua vigência. E os motivos para tanto não poderiam ser mais acertados.
Os pilares democráticos do processo criminal, robustamente estruturados pelos princípios da Constituição Federal de 1988, têm como ponto central a observância às formas procedimentais (devido processo legal), como maneira de assegurar, ao investigado, a necessária participação e ciência de todo o processo que poderá implicar sua condenação criminal. Exatamente por isso, não há espaço, no Brasil democrático, para qualquer procedimento ou, especialmente, método de obtenção de prova criminal, que fuja às previsões legais. Na mesma medida, e pretendendo evitar a ocorrência desses procedimentos ilegítimos, quaisquer condutas que abram margem a ilegalidades processuais também devem ser postas em xeque.
Com isso em mente, a captação ambiental se coloca, invariavelmente, como método de obtenção de prova que não assegura a observância ao devido processo legal, exatamente por se dar de forma alheia ao conhecimento – e ao consentimento – de ao menos um dos interlocutores da conversa captada, e sem prévia concordância das autoridades Estatais (cuja função é, exatamente, zelar pelo devido decurso processual).
De fato, há enorme risco de o Estado se utilizar de um particular para obter de forma sub-reptícia a confissão da prática de algum crime de pessoa investigada em ambiente privado, por exemplo. Ou, ainda, de um indivíduo manipular uma situação para simular a ocorrência de um crime (por exemplo, de um crime contra a honra, ou de alguma situação de violência verbal), incriminando pessoa inocente.
E a imposição constitucional de observância ao devido processo legal ganha força com a percepção de que, no Direito Criminal, os sujeitos processuais não têm a mesma medida de força. Ao contrário do que ocorre no Direito Privado, por exemplo, em que civis litigiam entre si, dispondo dos mesmos meios de prova e dos mesmos mecanismos de acesso à Justiça (onde prevalece, de fato, o princípio de cooperação entre as partes); no Direito Criminal, fala-se em contraposição entre o Estado, na figura do Órgão Acusador, o Ministério Público, e um indivíduo exposto ao risco da mais alta sanção do ordenamento legal, a pena privativa de liberdade. Tratam-se, indiscutivelmente, de partes com forças desproporcionais no âmbito processual. Carlos Alberto Carbone explica, com precisão, que:
“por este principio se quiere que el Estado litigante esté em pie de igualdad, pero que a más de abarcar la igualdad de armas respecto a las mismas posibilidades de contradecir, ofrecer prueba, recurrir, etcétera, supone también contemplar la igualdad de recursos estructurales y materiales“.[2]
E, nessa medida, a observância aos requisitos processuais legais é dever intrínseco à natureza do Órgão Estatal Acusador, e deve sempre parametrizar a condenação criminal de um cidadão. Mas, por outro lado, não parece razoável exigir, de um mero cidadão, o acesso a meios de prova e o pleno conhecimento de todos os requisitos legais, para que possa, simplesmente, demonstrar sua inocência e, com isso, evitar sua condenação criminal.
É por isso que, no Brasil, admite-se quaisquer provas – mesmo as ilegítimas, ou seja, que tenham sido obtidas por meios diversos daqueles previstos legalmente – em matéria de defesa. E a prevalência do mérito sob a forma, exclusivamente em matéria de defesa, não poderia ser diferente em relação à captação ambiental.
É claro que, ainda assim, o processo penal se resguarda de provas manipuladas ou questionáveis, independentemente se obtidas em observância aos requisitos e parâmetros estipulados pela legislação. Tanto que, ao incluir no ordenamento penal brasileiro a captação ambiental, o Pacote Anticrime firmou a “integridade da gravação” como requisito, além da sua utilização em matéria de defesa.
Ao fazê-lo, o dispositivo legal ficou em completa assonância com os princípios e bases constitucionais que regem o processo penal brasileiro, que foram, todas, exaltadas na justificação da derrubada do veto presencial, pelo Congresso Nacional, em abril desse ano.
Não surpreendentemente, porém, com o reingresso do dispositivo do art. 8º-A, § 4º, da Lei n° 9296/1996 em vigor, propostas legislativas surgiram com o intuito de reformar a legislação brasileira e permitir que a acusação também possa lançar mão de tal meio de prova, reaquecendo os argumentos anteriormente lançados nesse sentido, inclusive o mencionado pelo Presidente da República, em seu já reformado veto. É o caso, por exemplo, do Projeto de Lei n° 1503/2021, do Senador Federal Randolfe Rodrigues (REDE-AP).
Caso aprovados, esses dispositivos representariam, sim, enorme retrocesso ao Direito Processual Penal brasileiro e, ainda mais, às garantias individuais que parametrizam – ou que, ao menos, deveriam parametrizar – a persecução penal no Brasil Democrático.
De todo modo, é fundamental aprofundar a discussão sobre os meios de obtenção de prova no âmbito do direito penal – que remontam à própria legalidade do processo e à validade de eventual condenação. Nunca é demais lembrar que estamos em terreno arenoso, que diz respeito a liberdades individuais, e o uso da captação ambiental em matéria de acusação pode levar a consequências esdrúxulas, como a efetivação de condenações fora dos parâmetros constitucionais, ou, até mesmo, de pessoas inocentes. A sede punitivista e a velha máxima de “tudo vale pelo combate à criminalidade” já se mostraram falhas; não podem e não devem se prestar a alargar balizas e garantias penais e processuais penais de tal modo que se admita a captação ambiental para a acusação.
NOTAS
[1] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8060285&ts=1630417745588&disposition=inline.
[2] CARBONE, Carlos. Principios y problemas del proceso penal adversarial. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2019. p. 49-50.