Por Alvaro Souza
A figura jurídica da Repercussão Geral foi inaugurada, no direito brasileiro, há 20 anos, quando a Emenda Constitucional 45/2004 estabeleceu que, dali em diante, os Recursos Extraordinários ao Supremo Tribunal Federal só seriam conhecidos, se demonstrassem a sua Repercussão Geral, nos termos do art. 102, III, § 3º: No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.
Desde então, a jurisprudência e a doutrina, em matéria criminal, debateram-se quanto ao que seria ou não “repercussão geral”, para os processos penais. Havendo posicionamentos igualmente defensáveis, tanto no extremo de que todo Recurso Extraordinário em matéria criminal deveria ter repercussão geral, pois estaria em jogo o direito fundamental à liberdade do cidadão, quanto na ponta que defende a admissibilidade o mais restritiva possível do Extraordinário, mesmo em matéria criminal, só se admitindo aqueles recursos em que, concretamente, seja vislumbrada uma repercussão para além da liberdade individual do réu.
É verdade que, nesse embate, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem pendido, historicamente, em direção ao polo mais restritivo da admissibilidade de Recursos Extraordinários em matéria criminal. Sintoma dessa tendência é a edição do Tema de Repercussão Geral 660 do STF, segundo cuja tese “A questão da ofensa aos princípios do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e dos limites à coisa julgada, tem natureza infraconstitucional, e a ela se atribuem os efeitos da ausência de repercussão geral”.
Uma explicação se faz necessária. Em matéria processual penal, as garantias constitucionais mais proeminentes são, talvez, as garantias ao devido processo legal, nos seus expoentes máximos do contraditório – garantia de ter, o cidadão, pleno conhecimento de tudo o que se alega contra ele, assim como oportunidade de a tudo contestar – e da ampla defesa – a garantia de ser assistido por defensor técnico, de ver produzidas as provas essenciais à sua defesa, bem como de exercer a autodefesa. De sorte que é comum que um Recurso Extraordinário – um tipo de recurso voltado, precipuamente, a sanar violações às normas e garantias constitucionais – em matéria criminal, acabe por arguir violações, justamente, aos direitos fundamentais ao contraditório e à ampla defesa.
Por outro lado, em razão mesmo de serem garantias fundamentais, o contraditório e a ampla defesa são direitos dos quais a legislação processual penal infraconstitucional, não raro, se ocupa com frequência. O grosso das normas do Código de Processo Penal, bem como das leis processuais penais para além do CPP, diz respeito ao exercício do contraditório e da ampla defesa. Assim, o que o Tema 660 de Repercussão Geral do STF diz, trocando em miúdos, é que a arguição de violação ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal, não teria repercussão geral, para fins de Recurso Extraordinário, por constituir assunto tratado na legislação infraconstitucional (assunto tratado nas leis e códigos que estão abaixo da Constituição).
O que o Supremo Tribunal Federal fez, com a edição do Tema de Repercussão Geral 660, fui munir a si mesmo de um poderoso instrumento para negar seguimento a Recursos Extraordinários em matéria criminal. Por serem elementares ao próprio processo penal, o contraditório e a ampla defesa se mostram violados na esmagadora maioria dos casos de arbitrariedades praticadas contra o acusado, arbitrariedades essas que desrespeitam flagrantemente o texto constitucional. Acontece que, justamente pela sua quase onipresença, no processo penal, também é comum que essas garantias fundamentais sejam objeto de normas infraconstitucionais.
O Tema 660, assim, autoriza o STF a não conhecer Recursos Extraordinários criminais, sempre que entender que a violação alegada, ao contraditório e à ampla defesa, implicaria também a violação de algum artigo de Lei ou do Código de Processo Penal. A pretensa lógica desse precedente é de que, se há violação de norma infraconstitucional, o recurso “correto” seria o Recurso Especial ao Superior Tribunal de Justiça, pois ao STJ caberia uniformizar a aplicação das Leis e dos Códigos que estão abaixo da Constituição.
Essa lógica acaba por lançar o jurisdicionado – lembre-se, o cidadão como eu o você, que deve ser presumido inocente até prova em contrário – num sistema insólito, no qual os seus direitos ao contraditório e à ampla defesa são constitucionalmente reconhecidos como fundamentais; de tão fundamentais, acabam abordados em um sem número de normas infraconstitucionais; mas justamente por serem tão fundamentais, e serem abordados em normas infraconstitucionais, o jurisdicionado acaba privado de arguir eventuais violações que venha a sofrer a esses direitos, ao próprio guardião máximo da Constituição, que é o Supremo Tribunal Federal.
O pretenso fundamento lógico, por trás do Tema 660, seria o de que se a violação ao contraditório e à ampla defesa existe, e esses direitos são disciplinados nas normas infraconstitucionais, então essa violação será reconhecida no recurso próprio, que é o Recurso Especial ao STJ. Um argumento que, embora possa até parecer formalmente perfeito, fecha os olhos à realidade, de que o STF e o STJ são compostos por magistrados diferentes, que podem divergir sobre um mesmo ponto. Ou, por acaso, nesses 35 anos ao longo dos quais ambas as Cortes coexistiram, o STF nunca reformou uma decisão oriunda do STJ?
Donde se conclui que, para um sistema processual que realmente visasse à máxima proteção dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, pouco deveria importar se uma violação ao contraditório e à ampla defesa também seria violação a qualquer artigo de Lei. Que ambos os Tribunais, então – o STJ e o STF – a apreciassem, conferindo ao cidadão um espectro máximo de proteção às suas garantias fundamentais.
Mas fato é que, a partir do Tema 660 de Repercussão Geral do STF, tornou-se ainda mais comum que Recursos Extraordinários criminais tivessem seguimento negado, ao argumento de que lhes faltaria a tal Repercussão Geral, já que as suas matérias talvez fossem tratadas, também, em legislação infraconstitucional.
Aqui se chega ao ponto do presente artigo. Como mencionado, o instituto da Repercussão Geral foi inaugurado em 2004. De lá para cá, tanto a jurisprudência como a doutrina debateram-se, no objetivo de definir o que seria essa Repercussão Geral, em matéria criminal. É certo que o Tema 660 do STF se afigura como importante manifestação da jurisprudência, acerca da matéria. Mas o entendimento dos tribunais é apenas uma, dentre as diversas fontes do Direito, que nosso sistema judicial reconhece.
No mínimo tão importante quanto ela, seria a própria fonte legislativa do Direito. E se, no campo jurisprudencial, o debate sobre a Repercussão Geral pode ter pendido para um lado, no campo legislativo, esse debate pendeu para o outro, o que se manifesta pela Emenda Constitucional 125/2022.
Através dessa emenda, o Poder Constituinte Derivado – o mesmo Poder Constituinte Derivado que, em 2004, criou a Repercussão Geral, para o Recurso Extraordinário ao STF – estendeu esse requisito, também, aos Recursos Especiais direcionados ao Superior Tribunal de Justiça, incluindo o § 2º ao art. 105 da Constituição: “§ 2º No recurso especial, o recorrente deve demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento.”
Acontece que a mesma Emenda Constitucional 125 acrescentou, também, o § 3º, ao art. 105, prevendo os casos em que, expressamente, a própria Constituição presumiria a repercussão geral da matéria tratada no Recurso Especial. E a primeiríssima hipótese, dessa presunção constitucional de relevância, é, justamente, os recursos oriundos de ações penais: “§ 3º Haverá a relevância de que trata o § 2º deste artigo nos seguintes casos: I – ações penais;”.
A atualização constitucional de 2022 parece deixar clara uma certa evolução do tema da Repercussão Geral, ao menos no que toca à fonte legislativa dessa norma: em 2004, o Poder Constituinte criou a Repercussão Geral como requisito para o Recurso Extraordinário; ao longo de quase duas décadas, a jurisprudência, a doutrina, os operadores do Direito e a sociedade, debateram o que seria essa Repercussão Geral, em matéria criminal – um debate para o qual, sem dúvida, o próprio Supremo Tribunal Federal contribuiu sobremaneira, como fonte normativa jurisprudencial, mas não como a única fonte para o entendimento da matéria; em 2022, o Poder Constituinte que, em 2004, criara a Repercussão Geral, voltou ao tema, instituindo o requisito de Repercussão Geral também para os Recursos Especiais ao STJ; e esse mesmo Poder Constituinte de 2022, amadurecido no “caldo de cultura jurídica” produzido ao longo de 18 anos, sobre a questão da Repercussão Geral, escolheu expressamente afirmar que os recursos oriundos de ações penais teriam Repercussão Geral presumida.
Sim, sabe-se que uma leitura literal da EC 125/2022 conduz ao contra-argumento fácil, de que essa emenda alterou a disciplina constitucional do Recurso Especial, não do Recurso Extraordinário; e não, não se está a pregar que, após a Emenda Constitucional 125/2022, todo e qualquer Recurso Extraordinário em matéria criminal deveria ser automaticamente admitido, presumindo-se a sua Repercussão Geral.
Embora esse pudesse ser, no mundo ideal, um cenário almejável, para a mais completa tutela das garantias constitucionais do cidadão, sabe-se que, no mundo real, isso talvez levasse a um colapso do sistema recursal ao STF, dado o volume de Recursos Extraordinários em matéria criminal que lá aportam.
O que se defende, se não é possível superar completamente o Tema 660 da Repercussão Geral do STF, é que ao menos se opere o necessário diálogo entre as fontes do nosso Direito Constitucional – a sua fonte jurisprudencial, manifestada pelo Tema 660/STF, e a sua fonte legislativa, expressa pelo Poder Constituinte, na EC 125/2022 – de modo que a aplicação do Tema 660/STF seja flexibilizada, nos Recursos Extraordinários em matéria criminal, ante a vontade manifesta do Poder Constituinte, em 2022, de que se outorgue, às ações penais, um espectro maior de tutela pelos Tribunais Superiores.
Assim, o que se propõe é que, pelo menos, à luz da Emenda Constitucional 125/2022, a aplicação do Tema 660/STF, aos Recursos Extraordinários em matéria criminal, seja menos automática, menos voltada ao fim precípuo de negar a admissibilidade do Extraordinário, em atenção ao clamor, do Poder Constituinte, de que as instâncias extraordinárias se mostrem mais permeáveis aos recursos em matéria criminal.
Pois, se há casos em que as violações ao contraditório e à ampla defesa estão intrínseca e indissociavelmente vinculadas a determinado dispositivo da legislação infraconstitucional, há outros, igualmente numerosos, em que a quebra dessas garantias fundamentais só se revela, se as mesmas forem consideradas no seu núcleo essencial, previsto na Constituição, a despeito de não haver violação evidente a determinado artigo da legislação infraconstitucional que, eventualmente, resvale no caso concreto.