Por Miguel Fragelli
No último dia 18 de abril, o Superior Tribunal de Justiça aprovou a sua Súmula n. 667, segundo a qual “eventual aceitação de proposta de suspensão condicional do processo não prejudica a análise do pedido de trancamento de ação penal”. Trata-se de enunciado que, embora possa trazer consequências positivas, tem como causa a má aplicação da justiça negocial no processo penal brasileiro.
A suspensão condicional do processo distingue-se dos demais institutos de justiça negocial porque a proposta é feita em conjunto com o oferecimento de denúncia, nos termos do artigo 89 da Lei n. 9.099/1995. Assim, se o acusado aceita a proposta, o juiz recebe a denúncia e suspende a ação penal para dar início ao cumprimento das condições contidas na proposta.
Por outro lado, propostas de transação penal e acordo de não persecução penal são feitas em momentos anteriores à denúncia, conforme os artigos 76 da Lei n. 9.099/1995 e 28-A do Código de Processo Penal, respectivamente. O acordo de não persecução penal, inclusive, é feito logo antes do oferecimento de denúncia, quando já não seria mais possível arquivar o inquérito policial.
Todos, contudo, seguem uma mesma lógica: o indivíduo, caso cumpra as condições necessárias para ser beneficiado por um desses institutos, abre mão de se defender (no caso do acordo de não persecução penal, chega a inclusive confessar a prática do crime) para imediatamente cumprir uma pena alternativa à de prisão. Se cumprir o que foi acordado, terá a sua punibilidade extinta; se não cumprir, o processo em face dele voltará a fluir.
O que a Súmula n. 667 deixa claro é que aceitar a proposta de suspensão condicional de processo não impede o acusado de combater a deflagração de ação penal em seu desfavor. Isso porque, como afirmam alguns julgados citados como precedentes dessa Súmula, se não forem cumpridas as condições acordadas, a ação penal poderá ser retomada. [1]
Sendo assim, referida lógica também deve ser aplicada aos acordos de não persecução penal, para que eventual celebração de acordo não impeça que o investigado continue a requerer o trancamento do inquérito policial ou até a sua absolvição sumária. Nesse sentido, verifica-se que esse é o entendimento que mais recente do Superior Tribunal de Justiça sobre a questão [2], embora ainda existam decisões em sentido contrário. [3]
Trata-se de questão que deve ser pacificada da mesma forma como ocorreu com a suspensão condicional do processo, para que acordos abusivos não sejam inquestionáveis. Isso seria uma consequência positiva dessa súmula, que, mais do que colocar um freio a negociações processuais arbitrárias, evidencia como a justiça negocial é deturpada na realidade prática do processo penal brasileiro.
Afinal, não é nenhum exagero dizer que o processo penal, por si só, já é um constrangimento para quem se encontra na condição de investigado ou acusado. Qualquer pessoa que esteja no polo passivo da relação processual sofre diante do poder da coerção estatal. E, quanto mais durar o processo ou investigação, maior será constrangimento, pois se arrastará por mais tempo. [4]
Logo, qualquer sujeito passivo encontra-se em uma situação de vulnerabilidade perante o Estado, mesmo que seja inocente. Quer se livrar o quanto antes do processo penal, para interromper a coerção que está sofrendo. Não há, portanto, relação de igualdade entre o indivíduo e o Estado em um processo penal.
É nesse contexto em que devem ser compreendidas as ferramentas de justiça negocial que existem no processo penal brasileiro. Contudo, soma-se a isso o fato de que esses instrumentos de justiça consensual foram introduzidos ao processo penal brasileiro, tradicionalmente marcado por uma lógica de conflito, sem nenhuma preocupação quanto a uma possível contaminação.
Quando esses institutos foram introduzidos nos anos 1990, esperava-se que fosse ser inaugurado um novo modelo de justiça criminal, no qual alguns casos que resultariam em condenações fossem ser solucionados via acordo, diminuindo o número de processos no sobrecarregado Poder Judiciário.[5] Isto é, os casos que deveriam ser objeto de acordos seriam aqueles nos quais os acusados seriam condenados, não aqueles nos quais se chegaria a uma absolvição.
Contudo, operados por agentes acostumados com a lógica do conflito, esses institutos consensuais ficaram viciados. Investigações que deveriam ser arquivadas passaram a resultar em transações penais e, agora, em acordos de não persecução penal. Denúncias que deveriam ser rejeitadas passaram a gerar suspensões condicionais do processo.
Sob o ponto de vista da acusação, isso é precisamente descrito por Vinicius de Gomes Vasconcellos:
“Por certo, o mecanismo da barganha possibilita condenações que seriam inviáveis em um julgamento em conformidade com o devido processo penal. Diante desse panorama, a doutrina descreve a crescente utilização de institutos consensuais em casos com frágil lastro probatório, nos quais a dúvida impediria a imposição de uma sanção penal: trata-se das negociações ‘half-loaf’, terminologia que, em tradução livre, expressa o ditado ‘mais vale um pássaro na mão do que dois voando’, ou seja, na visão dos promotores, melhor uma punição reduzida do que a suposta impunidade.”[6]
Inclusive, a ideia de mais vale um pássaro na mão do que dois voando também se aplica a esses acordos sob a ótica da defesa. Mesmo que entenda que a investigação em seu desfavor possa ser arquivada ou que, ao final do processo, o mais provável é que seja absolvida, o investigado/acusado, em meio ao constrangimento que é estar no polo passivo de um processo penal, fica na dúvida sobre abrir mão de um benefício e ficar com o risco de, ao final, ser condenado a uma pena de prisão.
Nesse contexto, a dúvida também é um fator de coação sobre o sujeito passivo do processo penal. Com o medo de perder a liberdade e querendo acabar com o processo criminal o quanto antes, investigados ou acusados costumam aceitar acordos mesmo quando provavelmente seriam absolvidos.
Sendo assim, a Súmula n. 667 do Superior Tribunal de Justiça em muito ajudará a combater esses acordos autoritários no que se refere às suas consequências, pois permite que indivíduos continuem questionando-os mesmo depois de celebrarem-nos. Trata-se de uma novidade positiva, sem dúvidas, sobretudo se a sua aplicação for expandida para os outros institutos de justiça consensual. Mas que atua mais no sintoma do problema do que na sua causa.
Afinal, esse verbete em nada contribui para coibir acordos abusivos em sua origem. Apenas permite que o acordo seja questionado após ser celebrado, mas não impede que seja firmado quando não deveria. E isso, por si só, já é um constrangimento ao acusado.
Nesse sentido, verifica-se que a súmula nada diz sobre as condições do acordo que já teriam sido cumpridas antes de eventual trancamento do processo, deixando alguns questionamentos no ar. Com o reconhecimento da coação sofrida pelo indivíduo, ele poderá requerer algum tipo de indenização contra o Estado? Se tiver sido fixado determinado valor a ser pago como reparação do dano como condição para cumprimento do acordo e o indivíduo já tiver arcado com parte dessa quantia, ele poderá obter de volta esses valores?
Parece que, uma vez que as condições firmadas em acordos não são propriamente entendidas como pena, não são objeto de tanta preocupação pelo nosso Poder Judiciário. Ocorre que, mesmo que sejam mais brandas e não privem a liberdade de pessoas, essas condições acordadas restringem direitos de quem os celebra. Logo, quando o acordo é celebrado por pessoa que não deveria ser submetida a isso, essas condições não são um benefício fruído pelo acusado, mas sim um constrangimento ilegal.
Se o problema das negociações abusivas no processo penal brasileiro fosse atacado em sua raiz, os problemas expostos acima sequer seriam levantados, pois seriam resolvidas de pronto. No entanto, a súmula em questão mais reduz danos do que os evita, o que permite que acordos abusivos ainda prevaleçam.
Isso porque a única forma de combatê-los será a via estreita do habeas corpus, na qual a análise de provas é muito restrita e o trancamento de processos é providência excepcional. Sendo assim, o mais provável é que, com base nessa Súmula, apenas sejam anulados os acordos extremamente arbitrários, e não todos aqueles que sejam ilegais, o que deveria ser feito.
Portanto, temos que a possibilidade de anulação de acordos injustos representa um passo em direção a um melhor modelo de justiça criminal negocial, mas ainda estamos longe de solucionar o problema da deturpada visão de justiça consensual que vivenciamos no dia a dia forense.
[1] Nesse sentido: RHC 92549/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/4/2018, DJe de 9/4/2018; RHC 93690/DF, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 13/3/2018, DJe de 21/3/2018.
[2] AgRg no RHC 174870/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 11/03/2024, DJe de 15/03/2024.
[3] HC 619.751/SP, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 11/12/2020, DJe de 15/12/2020.
[4] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 20. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, p. 35.
[5] GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luiz Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099, de 26.09.1995. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 47-50.
[6] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e justiça criminal negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015, p. 172.
[7] Idem, p. 172-173.