Por Nicole Mizrahi Dentes
É sempre bom lembrar que, no moderno Processo Penal, a decisão do Órgão Julgador dependerá dos elementos probatórios angariados ao longo do curso do processo, ou seja, das provas ou evidências invariavelmente submetidas ao crivo do contraditório e da ampla defesa, sem o que não serão aptas a fornecer o necessário fundamento ao julgamento.
Exatamente pela aptidão de influenciar a busca pela chamada “verdade processual”, as provas produzidas pelos atores processuais merecem cuidado e proteção à altura da relevância desse importantíssimo papel que exercem no processo. É daí que nasce o instituto da “cadeia de custódia da prova”. Na linguagem jurídica, conceitua-se “cadeia de custódia” como o conjunto de procedimentos exigidos para a preservação e para a rastreabilidade dos elementos de convencimento angariados no processo, caracterizando requisito de validade do resultado da atividade probatória.
A expressão, por óbvio, remete metaforicamente a uma corrente, formada por elos que correspondem aos agentes que interagem com um determinado vestígio material. A questão diz respeito à demonstração da autenticidade e da integridade de cada fonte de prova, desde a sua origem até o término da sua utilização processual. É a forma de se preservar a prova – e, em mesmo grau de importância, de se demonstrar a sua preservação – assegurando que a mesma foi conservada, que jamais foi adulterada e que não sofreu nenhum tipo de diminuição[1].
E se, porventura, houver qualquer situação que prejudique a higidez da cadeia de custódia da prova, poderá haver a diminuição da sua força probatória, ou até mesmo o próprio descarte da prova e de todas aquelas que dela tenham derivado, seguindo a Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada, amplamente aplicada pela Justiça brasileira. Para Geraldo Prado[2], “quando verificada a quebra da cadeia de custódia, o que há é a impossibilidade do exercício efetivo do contraditório pela parte que não tem acesso à prova íntegra. Os elementos remanescentes sofrem com a lacuna criada pela supressão de outros elementos que poderiam configurar argumentos persuasivos em sentido contrário à tese deduzida no processo e por essa razão estão contaminados e igualmente não válidos”.
A disciplina da cadeia de custódia da prova foi finalmente inserida no Código de Processo Penal, por meio da Lei n.º 13.964/2019, que ficou amplamente conhecida por Pacote Anticrime. Acrescentando os artigos 158-A ao 158-F ao CPP, a norma passou a atribuir uma conceituação legal ao instituto[3], bem como diretrizes técnicas das etapas necessárias de preservação da integridade do material probatório recolhido em determinado processo criminal (reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte).
Se, de um lado, é inegável que a inclusão desses artigos na legislação brasileira, tratando expressamente da cadeia de custódia, tenha demonstrado efetiva preocupação pública com a matéria e tenha o potencial, de fato, de acarretar diversas melhorias práticas; de outro, é bem verdade que os dispositivos incorporados ao Código de Processo Penal não foram capazes de disciplinar, de forma suficiente, todos os aspectos dessa matéria, deixando uma série de lacunas a serem supridas oportunamente.
Especificamente, fica evidente a preocupação do legislador em descrever detalhadamente a cadeia de custódia de provas físicas e materiais, deixando de dar tratamento aos procedimentos quanto à custódia de provas imateriais, particularmente as provas digitais, cada vez mais frequentes em casos de corrupção, lavagem de dinheiro e crimes econômicos em geral.
É bem verdade que, até agora, não há uma interpretação uníssona, por parte dos doutrinadores em matéria processual penal, a respeito da conceituação das chamadas provas digitais, inclusive lhes sendo atribuídas diferentes classificações. No presente artigo, porém, é suficiente a percepção da essência das provas digitais, compreendendo-as como as provas imateriais que podem ser armazenadas ou transferidas por meios eletrônicos.
Atualmente, as ferramentas tecnológicas e as redes sociais ocupam espaço fundamental na vida em sociedade e já funcionam como uma das principais formas de armazenamento e correspondência de fotos, vídeos, documentos, mensagens de texto e de voz, além de outras formas de comunicação. Já quase não se pode mais imaginar a troca de dados ou de informações sem algum nível de utilização das ferramentas eletrônicas, o que, inevitavelmente, reverbera nos meios utilizados para a prática de delitos e, por derivação lógica, nas formas de obtenção das provas processuais.
A prova digital deriva diretamente dos avanços tecnológicos e da popularização dos dados digitais e, naturalmente, possui características próprias que a distinguem das espécies de prova tradicionalmente previstas no ordenamento jurídico brasileiro. A esse respeito, Denise Provasi Vaz[4] elenca quatro características da referida espécie probatória: (a) imaterialidade e desprendimento do suporte físico originário; (b) volatilidade; (c) suscetibilidade de clonagem; e (d) necessidade de intermediação de equipamento para ser acessada.
Diante das várias particularidades inerentes às provas digitais, é necessário manuseá-las seguindo procedimentos específicos, capazes de garantir a confiabilidade e a fidedignidade do dado recolhido. Principalmente, é importante trazer à discussão os procedimentos utilizados durante a cadeia de custódia da prova digital. Afinal, para que uma prova possa ser admitida a um processo, seja ela digital ou não, deverá ter sido produzida de acordo com as normas vigentes, tanto constitucionais (segundo tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte) quanto infraconstitucionais (como o próprio Código de Processo Penal).
Porém, é verdade que ainda não há disciplina legal sobre as provas digitais. Como dito, o Pacote Anticrime limitou-se a discorrer sobre os procedimentos necessários à cadeia de custódia da prova material, quedando-se absolutamente omisso a respeito dos critérios de obtenção e de preservação dos demais tipos de elementos de convicção, ainda que sejam cada vez mais recorrentes e relevantes.
Tanto já é defasada a disciplina legal criada em 2019, para tratar das provas digitais, que o Projeto de Lei mais recente que se propôs a debater a questão é datado do ano de 2020. De autoria da Deputada Federal Margarete Coelho (PP), que hoje já não mais exerce mandato, o Projeto de Lei visava a regulamentar a custódia e a apreensão de arquivos digitais, alterando o Código de Processo Penal. Porém, até hoje, a única providência tomada a respeito desse Projeto de Lei foi o mero apensamento a um outro Projeto de Lei (PL n.º 8045/2010), elaborado no longínquo ano de 2010 pelo então Senador Federal José Sarney (PMDB), passando a compor propostas de maiores mudanças no ordenamento processual penal, que ainda aguardam apreciação.
Enquanto a discussão sobre a cadeia de custódia da prova digital não avança na esfera legislativa, a demanda recai sob a jurisprudência. Com efeito, os Tribunais Pátrios vêm sendo instados a suprir algumas das lacunas deixadas pela legislação, ainda que de forma esparsa, afirmando quando são imprestáveis e estabelecendo requisitos de admissão e parâmetros de legalidade das provas digitais no processo criminal.
A título de exemplo, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça vem adotando posição bastante firme a respeito da ilegitimidade da utilização de meros prints de conversas via aplicativo WhatsApp, enquanto material probatório em processo criminal. Em diversas oportunidades, os Ministros daquela Turma afirmaram, exatamente, que se trata de mecanismo que deixa margem a dúvidas sobre a integridade do conteúdo transmitido na imagem do print. Veja-se:
[…] Esta Sexta Turma entende que é inválida a prova obtida pelo WhatsApp Web, pois “é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção “Apagar somente para Mim”) ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários.[5]
Em fevereiro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça foi novamente provocado a se manifestar sobre a matéria, e manteve sua opinião da imprestabilidade de prints como provas digitais, quando não demonstrada a higidez do documento. O julgamento, proferido em sede de Agravo Regimental em Recurso Ordinário em Habeas Corpus n.º 143.169, pela Quinta Turma daquela Corte, foi destaque no Boletim Informativo do escritório, disponível em nosso site, ocasião em que se ressaltou a opinião do Ministro Ribeiro Dantas, redator do Voto Vencedor, de que, em uma situação como essa, “a autoridade policial responsável pela apreensão de um computador (ou outro dispositivo de armazenamento de informações digitais) deve copiar integralmente (bit a bit) o conteúdo do dispositivo, gerando uma imagem dos dados: um arquivo que espelha e representa fielmente o conteúdo original”.
Especificamente em relação à discussão sobre o registro de conversas pelo aplicativo WhatsApp, largamente utilizado no Brasil, como elementos de convicção criminal, o que se tem visto como alternativa à insegurança inerente às provas digitais, viabilizando-se a comprovação da cadeia de custódia da prova e a possibilidade de sua aplicação como elemento de convicção, é a utilização de softwares específicos que se valem da tecnologia blockchain para garantia da preservação da integralidade da prova.
Nesse tipo de ferramentas, que vêm sendo cada vez mais utilizadas, a tecnologia blockchain permite o traço do histórico fidedigno da origem das informações. A utilização dessa tecnologia como suporte para a cadeia de custódia da prova parece eliminar as dúvidas e os riscos de adulteração de evidências e garantir a sua prestabilidade enquanto material probatório.
A informação registrada na blockchain é considerada imutável por garantir o registro das informações anteriores a cada nova alteração acrescentada, ligando todos os registros de forma encadeada – e formando, quase que ironicamente, uma verdadeira cadeia de custódia da prova digital. Assim, quando uma nova informação é validada, todas as que a antecedem são novamente validadas, atestando-se a higidez e a validade do documento desde a sua origem[6]. Além disso, a blockchain permite o histórico de atividades por conta do timestamp, mecanismo que registra os dados do usuário, a data e o horário de cada movimentação, impedindo qualquer alteração sem-rastro na cadeia de seu registro.
Apontada por muitos especialistas como a possível protagonista da próxima revolução nos negócios digitais, a blockchain pretende revolucionar a forma como asseguramos a fiabilidade cronológica dos dados digitais e, portanto, pode ser um verdadeiro aliado da inclusão das provas digitais na discussão processualística a respeito da cadeia de custódia.
Se novas tecnologias surgirão, se a blockchain será incorporada ao Processo Penal Brasileiro ou se as provas digitais terão uma disciplina regulatória própria e condizente com as balizas processuais pátrias, são questões que não parecem receber respostas muito cedo. Porém, uma coisa é certa: o processo penal brasileiro continuará acompanhando as evoluções tecnológicas e as demandas sociais, ainda que pela fixação e aplicação de precedentes, e a dogmática nacional não descansará enquanto não provocar as pertinentes discussões.
[1] PASTORE, Alexandro Mariano; FONSECA, Manoel Augusto Cardoso da. Cadeia de custódia de provas digitais nos processos do direito administrativo sancionador com a adoção da tecnologia blockchain. Cadernos Técnicos da CGU, Brasília, DF, v. 3, p. 97-109, nov. 2022. (Coletânea de artigos correcionais). Disponível em: https://revista.cgu.gov.br/Cadernos_CGU/article/view/597. Acesso em: 20 mai. 2023.
[2] PRADO, Geraldo. A Cadeia de Custódia da Prova no Processo Penal. São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 128
[3] Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.
[4] VAZ, Denise Provasi. Provas Digitais no Processo Penal: formulação do conceito, definição das características e sistematização do procedimento probatório. 2012. 198 f. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-28052013-153123/pt-br.php. Acesso em: 19 mai. 2023.
[5] RHC 99.735/SC, Rel. Ministra Laurita Vaz, 6ª Turma, julgado em 27/11/2018, DJe 12/12/2018. No mesmo sentido: AgRg no RHC 133.430/PE, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª Turma, julgado em 23/02/2021, DJe 26/02/2021.
[6] PASTORE, Alexandro Mariano; FONSECA, Manoel Augusto Cardoso da. Op. Cit.