Por Miguel Katz Zagury Fragelli
No dia 20 de junho de 2023, entrou em vigor a Lei n. 14.478/2022, que estipula diretrizes para regulamentação do mercado de criptoativos. Assim, conceitua diversos institutos presentes nesse mercado, como o de ativo virtual, considerado “representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento” e fornece linhas gerais para o funcionamento de instituições que prestem serviços relacionados aos ativos virtuais.
A regulação mais detalhada desse mercado não é objeto dessa Lei. Isso ficará sob responsabilidade do Banco Central do Brasil (BACEN), nos termos do recém publicado Decreto n. 11.563/23. Dessa forma, muitos dos dispositivos legais que acabaram de entrar em vigor só produzirão os seus efeitos quando devidamente complementados pelas regras estabelecidas pelo BACEN.
Para reforçar a regulação desse mercado, a Lei n. 14.478/2022 também introduziu dispositivos de caráter penal. Nos últimos anos, cada vez mais nos deparamos com notícias sobre fraudes milionárias cometidas via criptoativos por agentes que se aproveitavam da desregulamentação desse setor econômico. Não foram poucos os casos que recentemente apareceram no noticiário nacional, muitas vezes envolvendo pirâmides financeiras de ativos virtuais.
Até porque não havia, no direito penal brasileiro, nenhum crime que tratasse especificamente de condutas envolvendo esses ativos. Logo, os dispositivos penais introduzidos pela Lei de Criptoativos não visam apenas reforçar a regulamentação do mercado de ativos virtuais e tentar coibir práticas delitivas ocorridas nessa área. Objetivam, também, conferir certa segurança jurídica sobre o tema.
Para tanto, essa Lei classifica as prestadoras de serviços de ativos virtuais como instituições financeiras para os fins da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Lei n. 7.492/1986) – o que permite que condutas praticadas no âmbito dessas empresas configurem, em tese, esses crimes – e tipifica o delito de “fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros” (artigo 171-A do Código Penal).
A inserção das prestadoras de serviços de ativos virtuais na esfera da Lei n. 7.492/1986 acaba de uma vez por todas com uma das principais dúvidas sobre crimes que envolvem ativos virtuais. Em razão dos criptoativos serem muito utilizados como forma de investimentos, muito se questionava sobre se os delitos que os utilizavam como instrumento poderiam configurar crimes contra o sistema financeiro nacional.
Em uma das primeiras vezes em que se pronunciou sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em 2017, que o simples fato de o delito envolver a negociação fraudulenta de ativos virtuais não era suficiente para enquadrá-lo nos tipos penais da Lei n. 7.492/1986.[1] Nessa ocasião, prevaleceu que, como o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) entendiam que os criptoativos não possuíam natureza jurídica de moeda ou valor mobiliário, tais condutas não poderiam afetar o sistema financeiro nacional.
Segundo decidido pelo STJ nesse caso, essas práticas delitivas só poderiam ser enquadradas no delito de pirâmide financeira, crime contra a economia popular previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei n. 1.521/1951. Contudo, com o passar do tempo, essa posição foi sendo relativizada.
Em 2020, ao apreciar um caso de crime praticado por meio de ativos virtuais no qual havia um contrato de investimento coletivo não registrado, o STJ decidiu pelo enquadramento dessa conduta na sistemática da Lei 7.492/1986 – mais especificamente, a negociação dos ativos fraudulentos foi tratada como o crime do artigo 7º, inciso II, dessa Lei.[2] Uma vez que esses contratos são um tipo de valor mobiliário, o seu uso para fins ilícitos já seria suficiente para configuração de crime contra o sistema financeiro nacional, mesmo que cometido por criptoativos.
Posteriormente, em seu Parecer de Orientação n. 40, de 2022, a CVM definiu que criptoativos são valores mobiliários quando forem contratos de investimento coletivo ou a representação digital de alguma forma de valor mobiliário já prevista em Lei.[3] Com isso, facilitou-se o enquadramento de delitos cometidos via criptomoedas nos tipos penais da Lei n. 7.492/1986.[4]
Agora, com as disposições da Lei n. 14.478/2022 sobre ativos virtuais e a futura regulamentação pelo BACEN, essa questão será definitivamente resolvida. Mesmo assim, ainda será necessário aguardar essa regulação administrativa para que todos os efeitos penais da Lei de Criptoativos possam ser produzidos.
Nesse sentido, enquanto o Banco Central não especificar como deverá ocorrer a emissão e o registro de ativos virtuais não classificados como valores mobiliários, não há como imputar o crime do artigo 7º, inciso II, da Lei n. 7.492/1986 a agente que emita, mas não registre, determinado ativo virtual. Em uma situação como essa, não haveria como saber qual norma administrativa a pessoa teria infringido e, assim, colocado em risco o sistema financeiro nacional, o que impede a configuração desse delito.
Sendo assim, em casos de crimes envolvendo criptoativos que não constituam valores mobiliários, ainda será necessário aguardar a regulamentação a ser feita pelo BACEN para entender, em casos concretos, se determinada conduta é um crime contra o sistema financeiro nacional ou não.
Situação distinta ocorre em relação ao tipo penal do artigo 171-A do Código Penal, também introduzido pela Lei n. 14.478/2022. Diferentemente dos crimes contra o sistema financeiro nacional, o delito de “fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”, até por ser um crime contra o patrimônio, não precisa de uma regulação administrativa para produzir todos os seus efeitos.
Esse delito consiste na conduta de “organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”. Da sua leitura, constata-se uma aproximação ao crime de estelionato (artigo 171 do Código Penal), com o qual compartilha não só diversas elementares típicas, mas também o mesmo bem jurídico tutelado – o patrimônio.
É quase como se tratasse de uma forma especial de estelionato, cometida por meio de ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros. Logo, para uma melhor compreensão do que pode configurar esse crime, é preciso ter em mente o que se entende atualmente sobre a caracterização do estelionato “comum”, sobretudo quando comparado com o crime de pirâmide financeira previsto no artigo 2º, inciso IX, da Lei n. 1.521/1951.
Para tanto, é necessário ressaltar desde logo que o estelionato tem como bem jurídico o patrimônio, ao passo que o bem jurídico protegido pelo tipo penal de pirâmide é a economia popular. Isto é, enquanto o primeiro refere-se a bem jurídico individual, o segundo trata de um bem jurídico coletivo. Não à toa, o tipo do estelionato prevê a indução ou manutenção de “alguém em erro”, na medida em que o de pirâmide descreve a obtenção de ganhos ilícitos “em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas”.
Diante disso, prevalece no Superior Tribunal de Justiça que a diferenciação dos crimes de estelionato e pirâmide financeira ocorre pela existência de vítimas determinadas no primeiro e indeterminadas no último. Mais especificamente, o que distingue esses crimes é a captação das vítimas: no estelionato, a fraude visa enganar uma pessoa específica; na pirâmide, possui um direcionamento genérico. Nem mesmo a identificação de algumas vítimas da pirâmide é suficiente para enquadrar a conduta como estelionato, sendo a forma de captação o que mais importa.[5]
Inclusive, recentemente, o STJ apreciou o caso de pessoas que estavam sendo acusadas, além de outras condutas, de: (i) criarem um site sob o pretexto falso de investimento em criptoativos e, paralelamente, (ii) enganarem pessoas específicas e as convencerem a investir por meio desse site. Nessa ocasião, seguindo a posição da Corte sobre a forma de captação ser o que distingue o enquadramento desses delitos, foi decidido que a primeira conduta caracterizava o crime de pirâmide financeira e a segunda o delito de estelionato.[6]
No entanto, esses fatos foram praticados antes da aprovação da Lei n. 14.478/2022 e até mesmo da primeira regulamentação dos ativos virtuais pela CVM. Se esse caso tivesse ocorrido atualmente, a partir dos critérios estabelecidos pelo STJ, poderíamos enquadrar a primeira conduta como o crime previsto no artigo 7º da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e a segunda como o delito do artigo 171-A do Código Penal.
Afinal, uma vez que é um crime contra o patrimônio individual, que necessita da indução ou manutenção de “alguém em erro” para a sua configuração, o crime de fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros deve ser interpretado tal qual o estelionato, até para fins de segurança jurídica. Portanto, só ocorrerá quando for verificado que houve a captação de vítimas específicas no caso concreto.
Logo, o que antes seria um crime contra a economia popular, com pena de detenção de seis meses a dois anos, pode vir a ser enquadrado como um crime contra o sistema financeiro nacional, com pena de reclusão de dois a seis anos. Por outro lado, o que antes seria um estelionato comum, cuja pena é de um a cinco anos de reclusão, agora pode ser uma fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros, que tem pena de quatro a oito anos de reclusão.
Isso, contudo, pode acabar por prejudicar justamente quem mais sofre com esses delitos: as pessoas que perdem dinheiro nessas fraudes. Com as penas que lhes são atribuídas, esses tipos dificultam a aplicação de institutos despenalizadores ao caso concreto. O crime do artigo 171-A do Código Penal, por exemplo, impede que o autor do delito firme acordo de não persecução penal, instituto despenalizador que tem como requisito para sua celebração a reparação do dano sofrido pela vítima.
Dessa forma, esse aumento de penas, ao obstar a aplicação desses institutos, acaba por dificultar a reparação célere do dano sofrido pela vítima, o que muitas vezes é o seu principal interesse.
Assim, em relação às fraudes cometidas via criptomoedas, o que a Lei n. 14.478/2022 fez foi dar um novo enquadramento penal, mais específico, para condutas que já eram abarcadas por tipos penais genéricos. E, como não poderia deixar de ser em casos que costumam ganhar atenção da imprensa nacional, a nova resposta envolve uma pena mais dura. Isto é, para lidar com o problema recente das fraudes envolvendo ativos virtuais, foi utilizado um velho expediente: o endurecimento das penas por meio de um novo enquadramento legal das condutas.
[1] CC 161.123/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/11/2018, DJe 05/12/2018.
[2] HC 530.563/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 05/03/2020, DJe 12/03/2020.
[3] COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS. Parecer de Orientação CVM n. 40, de 11 de Outubro de 2022. Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html, acesso em 18 de junho de 2023.
[4] ARAS, Vladimir. Marco regulatório da criptoeconomia e sua repercussão no campo penal (parte 1). Consultor Jurídico, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-13/vladimir-aras-avanco-marco-regulatorio-criptoeconomia, acesso em 18 de junho de 2023.
[5] HC 464.608/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 06/12/2018.
[6] RHC 161.635/PE, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 23/08/2022, DJe 30/08/2023.