Por Odel Antun e Alvaro Augusto Orione Souza
Plenário do STF começará a julgar, no próximo dia 11 de dezembro, se é subsumível ao tipo do art. 2º, inciso II, da Lei 8.137 de 1990, a conduta do representante legal da empresa que deixa de recolher ICMS próprio, apesar de regularmente declará-lo.
Em agosto de 2018, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em decisão por maioria de votos, denegou a ordem, nos autos do Habeas Corpus 399.109/SC. Tratava-se de um HC impetrado, pela Defensoria Pública, em favor de um casal de pequenos empresários, denunciado pelo delito do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, e que visava ao reconhecimento de que a sua conduta seria atípica, por terem eles, sem o emprego de qualquer espécie de fraude, apenas deixado de recolher ICMS devidamente declarado ao Estado de Santa Catarina.
Por meio dessa decisão, o STJ uniformizou o entendimento de suas duas Turmas especializadas em Direito Criminal, no sentido de que seria típica, nos termos do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, a conduta de deixar de recolher ICMS próprio (e não oriundo de substituição tributária), incorporado ao valor final do produto/serviço repassado ao adquirente/consumidor, ainda que regularmente declarado à Autoridade Fazendária. Entendeu-se que seria indiferente, para a configuração do delito, a regular apuração, registro e declaração do imposto, ou o fato de não se tratar de hipótese de substituição tributária.
Esse acórdão foi alvo de recurso, perante o Supremo Tribunal Federal, por meio do RHC 163.334. Dada a relevância da matéria, o relator do recurso, Min. Luís Roberto Barroso, afetou-o ao Pleno do Pretório Excelso, encontrando-se, o feito, pautado para a sessão do próximo dia 11 de dezembro.
Mas o que está, exatamente, em discussão?
O voto condutor da decisão em questão foi o do Exmo. Ministro Rogério Schietti Cruz, e se estruturou, fundamentalmente, sobre dois pilares:
1. na aproximação do tipo do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, ao delito de apropriação indébita, para disso extrair que seria desnecessária a fraude para a sua configuração – então seria indiferente o contribuinte ter declarado corretamente as informações que deveria ao Fisco; e
2. na diferenciação entre os termos “descontado” e “cobrado”. Desta diferenciação surgiria uma interpretação de que a norma incriminadora abarcaria duas situações distintas, a de impostos indiretos e a de substituição tributária.
Quanto ao primeiro desses pilares, a construção argumentativa pareceu tentar contornar o quanto já decidido pelo STF, no Agravo em Recurso Extraordinário 999.425, de relatoria do Exmo. Ministro Ricardo Lewandowski, de Repercussão Geral reconhecida.
Naquele Agravo, analisando o mesmo artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, o Supremo reconheceu a constitucionalidade dos crimes previstos na Lei 8.137/90 – mas única e exclusivamente na medida em que os mesmos incriminam fraudes e ardis, e não a mera dívida tributária.
Colhe-se, afinal, daquele precedente, que as condutas tipificadas na Lei 8.137/90 “não se referem simplesmente ao não pagamento de tributos, mas aos atos praticados pelo contribuinte com o fim de sonegar o tributo devido, consubstanciados em fraude, omissão, prestação de informações falsas às autoridades fazendárias e outros ardis. Não se trata de punir a inadimplência do contribuinte, ou seja, apenas a dívida com o Fisco.” (1)
Parece, de fato, que é na tentativa de contornar esse requisito, já imposto pelo STF, de que haja fraude para a legítima tipificação dos Crimes contra a Ordem Tributária, que o acórdão questionado busca aproximar o artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, do delito de apropriação indébita, no intuito de, com isso, concluir que o elemento fraude não seria essencial ao crime fiscal, assim como não o é ao delito do artigo 168 do Código Penal.
Percebe-se que o raciocínio desenvolvido procurou fixar a discussão em torno dos elementos formais do tipo do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90. Entretanto, antes mesmo de se enveredar por uma discussão de tipicidade formal, é preciso refletir se a conduta de declarar corretamente o imposto próprio, deixando, contudo, de recolhê-lo se reveste ou não da necessária tipicidade material, para que possa ser considerada crime.
E a resposta só pode ser negativa, dado que o mero inadimplemento tributário não apresenta qualquer ofensividade que o torne digno de tutela penal, a qual deve necessariamente ser fragmentária.
Recorrendo-se, como fez a decisão da Terceira Seção do STJ, a um paralelo com os tipos tradicionais do Código Penal, da afirmação do patrimônio, enquanto bem jurídico digno de tutela penal, encontra-se a tipificação das condutas de roubo (lesão ao patrimônio com uso de violência), furto (lesão ao patrimônio por meio da subtração), estelionato (lesão ao patrimônio, mediante fraude), etc., mas não se encontra a criminalização do mero inadimplemento de dívida (por maior que seja a lesão ao patrimônio). Da mesma forma, o patrimônio do Estado-Fisco, não se nega, é digno de tutela penal, por meio das tipificações contidas na Lei 8.137/90, mas isso não legitima a incriminação do mero inadimplemento de imposto.
É preciso, então, perquirir qual o plus que se vem somar ao bem jurídico patrimônio do Estado-Fisco, para que se torne legítima a tipificação de alguma das figuras da Lei 8.137/90. Deve-se verificar qual modalidade de ofensa na conduta do agente torna o ataque digno de tutela de um Direito Penal fragmentário. E, no caso do seu artigo 2º, inciso II, pela própria analogia apresentada pela decisão do C. STJ, esse plus só pode ser a violação de uma relação de confiança, entre o Estado e o contribuinte – da mesma forma como a apropriação indébita é uma lesão ao patrimônio mediante quebra de confiança.
Com isso em mente, ainda que fosse cabível uma analogia entre as duas figuras (o crime tributário do artigo 2º, II, e a apropriação indébita), a mesma foi construída, na decisão em questão, de maneira incompleta, pois pareceu levar em conta um suposto “não elemento” do crime de apropriação – a fraude –, sem considerar aquilo que efetivamente é essencial à apropriação indébita: a quebra de relação de confiança. A violação de uma relação fiduciária entre vítima e ofensor.
Em outras palavras, o raciocínio que prevaleceu, no STJ, fecha os olhos ao fato de que a apropriação indébita, se não exige fraude, exige, sim, quebra de confiança – a quebra de confiança é o que confere dignidade penal à conduta, a fim de que seja legítima a sua incriminação. O delito de apropriação não se justifica apenas pelo desvalor do resultado, senão também, grandemente, pelo desvalor da ação, retratado justamente na quebra de confiança.
No caso do ICMS próprio, ainda que o valor do imposto seja repassado no preço final da mercadoria, o consumidor não deve tributo algum ao Estado. No pagamento do preço do produto, nada é confiado ao contribuinte, para posterior entrega ao Fisco.
A incorporação do valor do ICMS ao preço final do produto não cria qualquer relação tributária entre o consumidor e a Fazenda Estadual; assim como não se cria para o consumidor, ao pagar o preço da mercadoria, uma relação de emprego com o funcionário da loja; nem se converte, esse mesmo consumidor, em locatário do estabelecimento comercial (apesar de se tratar de custo refletido no preço a ser pago); muito menos converte-se o consumidor em devedor dos fornecedores da empresa que lhe vendeu o produto – embora mão-de-obra, aluguel e insumos sejam, todos, custos também repassados no preço final do produto.
A única conclusão possível, da perspectiva de um Direito Penal de ultima ratio, é a de que o inadimplemento de ICMS próprio, devidamente escriturado e declarado ao Estado não se reveste da necessária ofensividade (ou danosidade social, ou lesividade), para configuração de qualquer crime. Portanto, pode e deve ser enfrentado pelos demais ramos do Direito, em atenção ao imperativo de fragmentariedade do Direito Penal.
De todo modo, ainda que a ausência de lesividade não bastasse para demonstrar a atipicidade material da hipótese em debate, vê-se que a comparação entre os dois tipos penais não seria possível, ainda, porque, na situação de quem declara corretamente o imposto, apenas não conseguindo adimpli-lo, estaria ausente, também, a própria conduta nuclear “apropriar-se”. Afinal, aquele que declara todo o ICMS devido, deixando, contudo, de recolhê-lo aos cofres públicos – ainda que venha a embutir o seu valor no preço final da mercadoria – a toda evidência não se declara “dono” desse montante. Muito pelo contrário, reconhece, desde o princípio, que o seu titular é o Estado.
Em suma, a aproximação pretendida na decisão do Superior Tribunal de Justiça, entre o artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90 e o artigo 168 do Código Penal, não procede, e não autoriza a criminalização do inadimplemento de ICMS próprio, devidamente escriturado, pela inexistência de ofensividade, de desvalor da ação nessa hipótese, seja porque não há qualquer quebra de confiança, seja porque não há apropriação por parte daquele que declara pertencerem, os valores, ao Estado.
O segundo ponto fundamental do acórdão contestado no RHC 163.334 consistiu na interpretação dada ao termo “cobrado”, pretendendo diferenciá-lo substancialmente da partícula “descontado”, ambos contidos no tipo penal em questão.
Realmente, a redação do artigo 2º, inciso II da Lei 8.137/90, ao conter a expressão “tributo ou contribuição social, descontado ou cobrado”, restringe o tipo penal, fazendo-o não incidir sobre todo e qualquer devedor de tributo, mas somente sobre aquele que o tenha descontado ou cobrado de alguém.
Contudo, é descabida a exegese, esposada na decisão do STJ, que equiparou o termo “tributo cobrado” às situações de tributos indiretos, repassados ao consumidor como ônus financeiro, enquanto as hipóteses de substituição tributária estariam representadas apenas no termo “tributo descontado”. Por meio desse expediente, pretendeu-se, ao fim e ao cabo, expandir o alcance do tipo penal do artigo 2º, II, para que o mesmo atingisse, também, os casos de ICMS próprio, e não só aqueles de substituição tributária.
Essa interpretação incorre em um equívoco de técnica legislativa penal. Afinal, a utilização de dois, ou de múltiplos verbos nucleares, na redação dos tipos penais, decorre da técnica por meio da qual os tipos incriminadores procuram enunciar diversos verbos nucleares, a fim de que, em razão da regra da taxatividade do tipo penal, condutas assemelhadas, e que o legislador queria ver incriminadas, não acabem excluídas do âmbito de incidência da norma.
O exemplo mais claro desse expediente é encontrado na redação do tipo penal de receptação qualificada (art. 180, §1º do CP), a qual apresenta um sem número de verbos, todos bastante semelhantes (2). O que importa notar é que, a despeito da utilização de mais de um verbo, o sentido de todos os núcleos do tipo converge para a ideia de utilizar, de dar alguma destinação ao produto de crime anterior. Fica claro que o legislador penal, quando elenca uma lista de situações a serem tuteladas pelo tipo, não tem a intenção de fazer a norma atingir condutas que em nada se assemelhem umas às outras, ao contrário, usa múltiplos verbos para prever condutas assemelhadas.
Isso posto, não se pode concordar com a ideia de que as expressões “descontado” e “cobrado”, no artigo 2º da Lei 8.137/90 deveriam se referir, uma à hipótese de substituição tributária, e outra à de tributos indiretos. Isso porque a relação entabulada entre o responsável tributário e o contribuinte substituído, nada tem a ver com aquela mantida entre o contribuinte e seu consumidor final. Donde se alcança que o fenômeno tributário da substituição não guarda qualquer semelhança ou proximidade com o repasse da carga econômica do imposto no preço.
De modo que a melhor interpretação em matéria criminal determina que as expressões “descontado” e “cobrado”, contidas no tipo penal em análise, sejam reconduzidas a categorias semelhantes. No caso, o necessário respeito aos princípios da ofensividade e da fragmentariedade, já mencionados, obriga a que, tanto “descontado” como “cobrado” digam respeito a hipóteses de substituição tributária, do contrário, a incriminação seria ilegítima, por apenar o mero inadimplemento, que não se reveste de ofensividade penal.
Demonstrado o equívoco, da decisão do E. Superior Tribunal de Justiça, vale apontar algumas das consequências concretas que a mesma vem produzindo, ou tem o potencial de produzir, caso não seja revista, no julgamento do RHC 163.334.
A primeira questão que se deve levar em conta é que o universo tributário brasileiro é altamente complexo, o que já foi diagnosticado, inclusive, por instituições internacionais, como o Banco Mundial. Com efeito, aquela organização internacional realiza, anualmente, um estudo comparativo dos custos regulatórios incorridos pelas empresas, em 190 países. Na edição de 2019 desse estudo, o Brasil ocupa a 184ª posição, quando o quesito analisado é a tributação (3).
Num ambiente assim tão complexo, é natural que se proliferem divergências entre os contribuintes e os diversos entes arrecadadores. De forma que, na mesma medida de sua complexidade, o sistema tributário brasileiro é marcado por elevados índices de litigiosidade entre o Fisco e os contribuintes. O elevado grau de litigiosidade tributária, experimentado em nosso país, fica evidente nas estatísticas processuais compiladas pelo Supremo Tribunal Federal (4).
Por elas, verifica-se que, no ano de 2019, até o dia 31 de agosto, foram autuados, no STF, 7.797 processos em matéria de Direito Tributário, o que corresponde a 12,33% do total dos processos lá distribuídos esse ano. A título de comparação, no mesmo período foram autuados, em matéria de Direito Penal, 4.262 processos perante a Corte Constitucional – pouco mais de metade daqueles de matéria tributária.
Desses dados é possível extrair algumas conclusões de interesse, para o tema em discussão.
Primeiramente, embora os números acima não digam respeito exclusivamente às hipóteses de ICMS próprio, é razoável deduzir que o cenário de elevada litigiosidade, observado em nosso sistema tributário como um todo, sem dúvida se reproduz no tocante a essa espécie de tributo, dada a complexidade da sua disciplina, que se dá Estado a Estado. Como consequência, muito do ICMS “inadimplido”, porventura contabilizado pelos Estados, pode muito bem ser, na verdade, objeto de litígio entre a Administração Fazendária e os contribuintes. Afinal, se é elevado o grau de litigiosidade tributária, é porque os contribuintes encontram embasamento legal para questionar as pretensões arrecadatórias do Estado.
A posição firmada no STJ abre margem para que o contribuinte que diverge do ente arrecadador seja compelido, pelo risco da persecução criminal, a aquiescer com cobranças de impostos que ele tinha o direito de questionar. Quando se ameaça o dirigente das companhia, com ataque à sua pessoa física, estampando-lhe a pecha de criminoso, passa a ser muitos mais cômodo concordar com a exegese dada pelo Fisco às normas tributárias que arriscar sua própria pele para tentar garantir que a pessoa jurídica que representa pague apenas pelo imposto justo.
Claro está que não se pode mais exigir de um executivo o exercício de sua função de proteger o investimento dos acionistas, buscando (licitamente) um menor recolhimento de tributos, se o Estado o coage com indiciamentos, processos criminais, condenações com anotações no “rol de culpados” ou, até, com a prisão. A longo prazo, o não questionamento das interpretações do Fisco acaba atingindo o próprio equilíbrio do sistema tributário, conferido pela solução das contendas no âmbito do próprio Judiciário.
No nosso Estado de Direito, a última palavra na intepretação das normas tributárias há de ser do Judiciário e, ao contribuinte, é garantido o direito subjetivo de ação em qualquer caso em que perceba um direito seu lesionado ou ameaçado.
O grande perigo de se expandir arbitrariamente o alcance dos tipos penais tributários, é essa possibilidade de uso indevido do Direito Penal pelo Estado, subvertendo a sua função de proteção contra as lesões mais graves, aos bens jurídicos mais importantes, e rebaixando-o a mero instrumento de cobrança de dívida fiscal.
E já se tem observado iniciativas, em diversas unidades da federação, no sentido de se interpelar as empresas instaladas no respectivo Estado, com expressa referência a esse julgado do STJ, verdadeiramente ameaçando as pessoas físicas que as integram com a possibilidade de persecução criminal, caso suas Companhias não paguem o ICMS cobrado pela Administração Fazendária.
E, o que é pior, a criminalização dos contribuintes afetará, sobremaneira, o micro e pequeno empresário – vale lembrar que os pacientes, no RHC 163.334, são pequenos empresários do interior de Santa Catarina, que necessitam da assistência da ilustre Defensoria Pública , tendo sido acusados criminalmente por terem contraído, ao longo de 3 anos, dívida fiscal de 30 mil reais.
A se perpetuar esse quadro, fatalmente os micro e pequenos empresários passarão a ser alvo de persecuções criminais, quando seus negócios enfrentarem dificuldades que os impeçam de adimplir tempestivamente com a pesada carga tributária que os onera.
Como se percebe, a matéria sobre a qual o Supremo Tribunal Federal se debruçará, no próximo dia 11 de dezembro, é da mais alta importância, e o julgamento do RHC 163.334 definirá a continuidade, ou não, do ambiente de intimidação, por parte dos Estados, contra os seus contribuintes, instalado após a decisão do STJ, em que se tem acenado com a possibilidade de persecução criminal, como verdadeira grave ameaça, caso o imposto não seja pago sem questionamentos, em práticas de cobrança quase extorsionárias.
(1) STF, ARE 999425 RG, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, julgado em 02/03/2017, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-050 DIVULG 15-03-2017 PUBLIC 16-03-2017, destacamos.
(2) “Art. 180 (…) § 1º – Adquirir, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, coisa que deve saber ser produto de crime:”
(3) “Doing Business 2019 – Comparing Business Regulation for Domestic Firms in 190 Economies”. Disponível em http://www.worldbank.org/content/dam/doingBusiness/media/Annual-Reports/English/DB2019-report_web-version.pdf
(4) Disponível: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=pesquisaRamoDireito