Por Helena Gobe Tonissi
Casas de apostas e aplicativos de corridas de mototáxi tem ao menos um denominador em comum.
O depoimento na CPI das apostas esportivas, de uma empresária e influenciadora com milhões de seguidores — conhecida por divulgar o famoso “tigrinho” — reacendeu o debate sobre essa atividade, especialmente diante dos prejuízos que podem ser causados aos apostadores, como o endividamento extremo, a ludopatia e até o suicídio. Na semana seguinte, a morte de uma passageira em corrida de mototáxi na cidade de São Paulo deu abertura à outra controvérsia: a oferta desse tipo de serviço por empresas, diante do elevado risco de acidentes fatais, o que levou o Tribunal de Justiça de São Paulo a validar o Decreto Municipal 62.144/2023 que suspendeu a atividade.
De um lado, apostas que comprometem a saúde mental e financeira de milhares de pessoas. De outro, meios de transporte que podem resultar em lesões graves ou mortes. As duas atividades, não sem consentimento de seus consumidores, os expõem a riscos importantes. O inconformismo da sociedade com resultados indesejados, levanta o debate sobre o recrudescimento da resposta Estatal, através da imposição de penas.
Mas estariam as casas de apostas ou os aplicativos de corrida, que operam serviços potencialmente lesivos, sujeitos à intervenção penal como resposta às ofensas a estes bens jurídicos, especialmente à vida?
Em contraponto aos riscos, é evidente que essas atividades empresariais são garantidoras de riquezas e desenvolvimento, inclusive para o Estado, por meio da arrecadação de impostos. Nesse ponto, algumas atividades que chegam ao Direito como criminosas representam, para a Economia, simples meios de movimentação de recursos econômicos, independentemente de sua legalidade, e são, em regra, realizadas por pessoas jurídicas [1].
O modelo de produção capitalista, marcado por uma lógica de exploração agressiva, provocou, ao longo dos anos, efeitos negativos, especialmente danos ambientais e sociais. Esse cenário, fez com que emergisse o debate sobre a possibilidade de responsabilizar criminalmente a pessoa jurídica, tendo em vista que, até então, a determinação e a vontade só pertenciam à pessoa humana, com capacidade de dirigir suas ações a produção de uma finalidade determinada [2].
Isso porque, a pessoa jurídica é uma entidade abstrata composta por pessoas naturais que se unem, de forma consciente e coordenada, em prol de um objetivo comum, resultando na unidade orgânica da estrutura criada. De modo que a pessoa jurídica se distingue, quanto à personalidade e ao patrimônio, das pessoas naturais que a compõem, e não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
Portanto, antes de verificar a tutela penal das atividades econômicas que envolvem riscos aos consumidores, importa enfatizar que, no âmbito criminal, a responsabilidade sempre foi pessoal, de ordem subjetiva (pautada na consciência, vontade e autodeterminação do homem) [3].
Foi a partir da promulgação da Constituição Federal, em 1988, em razão do disposto no artigo 225, parágrafo 3°, da referida Carta e, posteriormente, com o surgimento da Lei dos Crimes Ambientais (Lei n. 9.605/1998), que passou a ser concreta, no Brasil, a possibilidade de responsabilização criminal da pessoa jurídica, com o estabelecimento de tipos penais e penas ajustáveis à sua natureza, hoje ainda restrita, contudo, aos Crimes Ambientais. Inicialmente, ainda se exigia a dupla imputação, isso é, que a acusação fosse lançada concomitantemente contra a pessoa jurídica e ao menos uma pessoa física, mas esse entendimento vem sendo superado pelos Tribunais Superiores, que passaram a admitir a incriminação do ente moral, sem necessidade de identificação e persecução concomitante com as pessoas naturais que o integram.
De modo que, há, hoje em dia, a possibilidade de responsabilização da pessoa jurídica, independentemente da responsabilização da pessoa física que a represente, na esfera dos crimes ambientais. Portanto, a responsabilização de pessoas jurídicas é limitada a poucos ilícitos penais. Nos demais casos, a imputação penal recai sobre as pessoas físicas vinculadas à organização, desde que sua conduta guarde nexo de causalidade com o resultado lesivo, bem como que a pessoa aja imbuída do elemento subjetivo exigido no tipo penal (dolo ou culpa).
Por isso, de modo a atender à expansão do direito penal econômico, com todas as características que lhe são peculiares, passou-se a admitir a aplicação da teoria da imputação objetiva nos crimes que compõem o ordenamento jurídico brasileiro vigente, induzindo não só a criação de novas figuras delitivas, mas também o aumento das possibilidades de responsabilização criminal neste âmbito [4].
A teoria da imputação objetiva pretende determinar se um resultado lesivo pode ser atribuído à conduta de um agente, verificando, além da causalidade, a criação de um risco proibido (juridicamente desaprovado) [5]. Em outras palavras, se aquela ação representava um risco não permitido e se o resultado indesejado foi uma consequência dessa ação. E, nesse sentido, é inerente ao Direito Penal Econômico a existência de negócios empresariais de risco, nos quais há, como pressuposto, a audácia, a necessidade de assunção de risco, e que, nem sempre, o tomador da decisão, prevê ou domina as consequências indesejadas [6]. Este é o motivo pelo qual não cabe o Direito Penal criminalizar qualquer conduta arriscada.
O risco nada mais é do que a imprevisibilidade das consequências de qualquer prática humana e, para que seja desaprovado, deve estar conectado à conduta da pessoa natural e ser intenso o suficiente para ser proibido [7]. Portanto, há, nestes casos, com fundamento na tutela de interesses supraindividuais, incriminações dos crimes de perigo, aumento dos tipos comissivos por omissão (violação do dever de cuidado), bem como das hipóteses de desobediência.
Ocorre que muitas vezes o resultado é a antecipação da punição a partir do momento em que se presume o perigo, ou seja, em momentos que a conduta praticada, em estruturas empresariais complexas, está muito distante do resultado lesivo e não configura um risco proibido. Ou ainda, mesmo com o aumento do risco proibido, ocorra um desvio causal que conduza ao evento indesejado/inesperado.
Assim, mesmo que fato preencha os elementos objetivos de tipicidade, ainda há de passar pela análise de lesividade [8]. O que incorre em dizer que, o fato de estimular e possibilitar que uma pessoa aposte ou faça corridas de mototáxi não pode objetivamente constituir lesão corporal, instigação ao suicídio ou homicídio, porque não há a criação de um risco de lesão ou de morte juridicamente relevante ou elevação do risco de vida de modo mensurável. Mesmo na perspectiva da teoria finalista, adotada majoritariamente no Brasil, apesar de entender preenchido o tipo objetivo, o crime, a não ser pelas circunstâncias do caso concreto, estaria afastado por ausência de dolo, uma verdadeira vontade capaz de atuar sobre os acontecimentos para gerar o resultado.
Verifica-se então que, em que pese sejam duas atividades empresarias de risco elevado aos consumidores, os resultados indesejados dificilmente poderiam ser atribuídos às pessoas naturais que compõe a pessoa jurídica, pela ausência do elemento subjetivo, mas também por não ter sido criado um risco juridicamente relevante do ponto de vista penal. Nesse sentido, condutas que, apesar de arriscadas, estão dentro dos limites do risco permitido não podem ser penalmente punidas.
No plano intermediário, ligado aos fatos e aos resultados indesejados, é equivocado atribuir nexo entre a conduta das pessoas naturais que viabilizam e disponibilizam esses serviços e o resultado lesivo (contribuição relevante para a ocorrência do fato criminoso). Não há e não deve haver, em um Estado Democrático de Direito, presunção de que por ocupar a função de gestor, diretor ou sócio, há vinculação com qualquer prática delitiva, por alguma falta de fiscalização, por exemplo. É necessário verificar, com base no caso concreto, se algum representante da pessoa jurídica tinha o dever e a possibilidade de evitar o resultado danoso.
Ademais, a criminalização deve respeitar o princípio da subsidiariedade, reconhecendo-se que o direito penal não é eficiente para solucionar todos os problemas da sociedade, e deve ser utilizado quando os outros ramos não forem suficientes na tutela dos bens jurídicos mais relevantes [9].
Cumpre ressaltar que é a regulação estatal a responsável pela redução de espaço dos riscos permitidos, por meio da criação de deveres extrapenais e ilícitos administrativos, que podem até preencher formalmente a moldura de tipos penais, mas que dependem da ofensividade da conduta para que sejam criminosos. Aliás, conforme bem aponta Greco [10], mesmo quando a norma penal não faz expressa referência ao direito administrativo, é dessa fonte que o direito poderá extrair o conteúdo da proibição (se o risco criado é ou não permitido). Inclusive, não há meio de considerar uma conduta penalmente relevante, se o direito administrativo aponta para atuação do autor em risco permitido.
De modo que, tanto as casas de apostas como os aplicativos de corrida de mototáxi são atividades empresariais modernas, que envolvem, até o momento, riscos permitidos pendentes de serem melhor regulamentados na esfera administrativa, para que sejam disponibilizados aos consumidores da forma mais segura possível. Além de restabelecer a legalidade, a sanção administrativa objetiva assegurar, no futuro, o cumprimento da lei e dos atos regulamentadores expedidos pelo Estado. Também possibilita a aplicação de sanções às próprias pessoas jurídicas, o que, como visto, é limitado por meio do Direito Penal.
A verdade é que o Direito Penal deve ter sua atuação reservada para casos excepcionais, predominando o direito administrativo sancionador na prevenção e aplicação de penalidades independentes do Judiciário, a fim de mitigar os riscos inerentes a atividades econômicas, garantindo a segurança e o interesse coletivo, sem sacrificar a livre iniciativa.
[1] Direito penal econômico: questões atuais / coordenação Alberto Silva Franco; Rafael Lira. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p.230.
[2] SAGGESE, S. B. La responsabilidad penal de las personas jurídicas: un estudio sobre el sujeto del Derecho Penal. 1997. 505 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidad Autonoma de Madrid, Madrid, 1997. Disponível em: https://repositorio.uam.es/bitstream/handle/10486/4345/29501_bacigalupo_saggese_silvina.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 25 jul. 2022
[3] BIANCHINI, Marcos Paulo Andrade; ARAÚJO, Giselle Marques de; OLIVEIRA, Ademir Kleber Morbeck de. Rompimento de barragens e responsabilidade penal da pessoa jurídica = Dam failure and the criminal liability of legal entities. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, Belo Horizonte, v. 21, 2024. DOI: 10.18623/rvd.v21.2439
[4] CARNELÓS, Guilherme Ziliani. A “independência das instâncias” : investigação sobre origem e critérios de aplicação na esfera penal / Guilherme Ziliani Carnelós. – 2021. 69 f. p.25.
[5] FRISCH, Wolfgang. La imputación objetiva del resultado: desarrollo, fundamentos y cuestiones abiertas. Tradução: Ivó Coca Vila. Barcelona: Atelier Libros Jurídicos, 2015, pp. 59-60.
[6] NIETO MARTÍN, Adán. Introducción al Derecho Penal Económico y de la empresa. In: BARRANCO, Norberto J. de la Mata et al. Derecho penal económico y de la empresa. Madrid: Dykinson, 2018, p. 50.
[7] BERNSTEIN, Peter Lewyn. Desafio aos deuses: a fascinante história do risco. Rio de Janeiro: Campus, 1997, 2 e ss.
[8] CARNELÓS, Guilherme Ziliani. A “independência das instâncias” : investigação sobre origem e critérios de aplicação na esfera penal / Guilherme Ziliani Carnelós. – 2021. 69 f. p.29.
[9] HASSEMER. Winfried. Fundamentos del derecho penal. Barcelona: Boch. 1984. P. 256-257.
[10] GRECO. Luís. A relação entre o direito penal e o direito administrativo no direito penal ambiental: uma introdução aos problemas da acessoriedade administrativa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, n. 58, maio 2006, p. 190.