Por Manuela Abreu
O caso recente da prisão em flagrante do jogador boliviano Miguel Terceros Acunã, do América-MG, por suposta injúria racial durante uma partida contra o Operário-PR pela Série B do Campeonato Brasileiro, trouxe à tona a discussão sobre o racismo no futebol e a efetividade das leis penais no combate a esse crime. Foi a primeira vez um juiz acionou o protocolo antirracismo em partidas das séries A e B no Brasileirão. [1]
Apesar da gravidade, as punições criminais ainda são exceções. De acordo com o último relatório do Observatório da Discriminação Racial no Futebol (2023), a maioria das ocorrências de racismo no futebol parte de torcedores contra jogadores (128 de 162 casos), enquanto apenas 12 atletas foram acusados de ofensas racistas. Os acusados costumam responder aos processos em liberdade, sem prisões em flagrante ou preventivas.
Além disso, uma pesquisa da Fisia Comércio de Produtos Esportivos, detentora dos direitos da Nike no Brasil, revelou que 41% dos jogadores negros já sofreram racismo nos principais campeonatos do país. Outro dado alarmante é que 97% das pessoas que praticam religiões de matriz africana afirmam não ter suas crenças respeitadas no meio futebolístico. Esses números evidenciam um problema estrutural que demanda ações mais rigorosas do Estado e das instituições esportivas.
Nesse sentido, o jurista e professor Adilson Moreira, em seu livro “Racismo Recreativo”, analisa uma série de decisões judiciais sobre injúria racial e demonstra como o racismo se manifesta de diferentes formas no Brasil, seja por meio de piadas, ofensas diretas ou mesmo na naturalização de estereótipos. Moreira destaca que, independentemente da forma como o racismo se apresenta – seja como “humor” ou como agressão explícita –, ele sempre tem o mesmo objetivo: manter estruturas de poder que privilegiam brancos em detrimento de negros.
Em entrevista à CartaCapital, Moreira afirma que “o racismo existe para garantir vantagens competitivas para pessoas brancas“, evidenciando como a discriminação racial não é apenas um ato individual, mas um mecanismo social de exclusão. Essa perspectiva é fundamental para entender por que casos de racismo no futebol, mesmo quando denunciados, muitas vezes não resultam em punições efetivas. A justiça brasileira ainda enfrenta dificuldades em enquadrar certas condutas como racismo, especialmente quando disfarçadas de “brincadeira” ou quando praticadas em ambientes onde a discriminação é historicamente tolerada, como nos estádios de futebol.
Nesse sentido, o 10º Relatório da Discriminação Racial no Futebol, divulgado em 2023 pelo da Observatório da Discriminação Racial no Futebol (2023), em parceria com a CBF e a UFRGS, apontou um aumento significativo nos casos de racismo no esporte. Em 2023, foram registrados 136 incidentes, um crescimento de 38,77% em relação a 2022 (98 casos). Desde 2014, primeiro ano do monitoramento, o aumento foi de 444% (de 25 para 136 ocorrências).
No Brasil, o racismo é tipificado como crime inafiançável e imprescritível pela Lei nº 7.716/1989, com pena de um a três anos de prisão. Além disso, a Lei 10.741/2003 (Estatuto do Torcedor) prevê punições específicas para atos discriminatórios em estádios, como suspensão de jogos e interdição de setores.
A prisão em flagrante de Miguel Terceros Acunã demonstra que, apesar da raridade dessas medidas, o sistema penal pode ser acionado. Porém, a efetividade da lei ainda é questionável, já que muitos casos não resultam em condenações ou sequer chegam à Justiça.
O resultado é que o futebol, esporte que mobiliza paixões e deveria ser instrumento de inclusão, segue sendo um espaço de reprodução do racismo estrutural. Cada vez que um caso é abafado, que uma punição é reduzida, que um clube se esquiva de responsabilidades, reforça-se a ideia de que ofensas raciais são “parte do jogo”.
Não são. São crimes. E enquanto forem tratados como meros incidentes esportivos, o futebol continuará falhando com os atletas negros, com a sociedade e com sua própria imagem. A mudança exige mais do que discursos. Exige punições reais, ações coordenadas e, acima de tudo, a coragem de enfrentar o problema em vez de maquiá-lo.
Além disso, um dos grandes desafios no combate ao racismo no esporte é a falta de uniformidade nas leis entre os países. Em competições internacionais, como a Libertadores, por exemplo, é comum atos racistas nas partidas.[2] Por este motivo, Bottini destacou que é um problema não existir “uma previsão única de punição criminal para os casos de racismo no esporte em todos os países da América do Sul“.
No Paraguai, a legislação enquadra o racismo como uma infração, não como crime, com penas que podem chegar a R$ 7 mil em multas. A lei proíbe expressamente a discriminação contra pessoas de origem africana, vedando a restrição de seus direitos por motivos raciais ou étnicos. Apesar da definição clara, ainda há incertezas sobre a efetividade das punições e se a proteção abrange apenas paraguaios ou também estrangeiros no país.
No Brasil, a lei permite que crimes cometidos contra brasileiros no exterior sejam julgados aqui, desde que o autor entre no território nacional e a conduta também seja criminosa no país onde ocorreu. Porém, sem leis equivalentes em outras nações, muitos casos ficam impunes.
A Lei 14.532/2023 representou um avanço crucial no combate ao racismo ao transferir as ofensas raciais do âmbito da injúria qualificada (art. 140, §3º do CP) para a Lei do Racismo (7.716/89). Agora, xingamentos e “piadas” com conteúdo racial não são mais tratados como meras injúrias – são enquadrados diretamente como racismo, crime inafiançável e imprescritível com penas mais severas
Como aponta Moreira, o racismo não se limita a ofensas isoladas, mas está enraizado em estruturas sociais que perpetuam a desigualdade. Portanto, é fundamental que (i) Clubes e federações adotem políticas antirracistas mais rígidas, incluindo educação para atletas e torcedores; (ii) a legislação penal seja aplicada com maior rigor, garantindo que os criminosos sejam efetivamente responsabilizados; (iii) haja harmonização das leis entre os países, especialmente em competições internacionais, para evitar a impunidade em casos transfronteiriços.
Ademais, a efetividade dessa mudança dependerá da postura de clubes, federações e do próprio Judiciário. Se antes as ofensas raciais no futebol muitas vezes terminavam em acordos ou punições brandas, agora há instrumentos legais mais contundentes. Mas de nada adiantará a lei mais dura se os casos continuarem sendo tratados como “incidentes esportivos” em vez de crimes que devem ser apurados com rigor. O desafio é fazer com que essa transformação legal se torne uma mudança real na cultura do futebol e da sociedade.
Afinal, enquanto o futebol for palco de discriminação, o esporte continuará refletindo as desigualdades da sociedade. Combater o racismo não é apenas uma questão jurídica, mas uma obrigação ética de todos os envolvidos no esporte.
REFERÊNCIAS
Observatório da Discriminação Racial no Futebol (2023).
Levantamento sobre a Diversidade no Futebol Brasileiro (Fisia/Nike).
Lei nº 7.716/1989 (Crime de Racismo).
Estatuto do Torcedor (Lei 10.741/2003).
MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Editora Jandaíra, 2022.
CartaCapital. “Adilson Moreira: O racismo existe para garantir vantagens competitivas para pessoas brancas”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/justica/adilson-moreira-o-racismo-existe-para-garantir-vantagens-competitivas-para-pessoas-brancas/.
[1] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2025/05/05/jogador-preso-em-flagrante-por-injuria-racial-em-partida-da-serie-b-do-brasileirao-vai-responder-ao-processo-em-liberdade.ghtml
[2] https://www.terra.com.br/esportes/palmeiras/conmebol-abre-procedimentos-apos-novos-casos-de-racismo-em-cerro-x-palmeiras,340e9fb86ffac5903fea1e6ff9d0c04cwwtf1m1h.html.