Por Manuela Abreu
Em 28 de junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, de forma unânime, o Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.393.219, e determinou que o Ministério Público não pode requisitar diretamente, à Receita Federal, dados fiscais de contribuintes para subsidiar investigações criminais ou ações penais.
Assim, a Corte Suprema negou provimento ao recurso do Ministério Público e manteve a posição do Superior Tribunal de Justiça, que declarou nulas as provas obtidas por meio da requisição direta de informações fiscais pelo MP, sem a devida autorização judicial. Essa postura é acertada, pois reflete a proteção constitucional dos dados fiscais do cidadão, assegurada nos artigos 5º, incisos X, XII e LXXIX da Constituição Federal, que garantem a sua privacidade e intimidade, estabelecendo a inviolabilidade dos seus dados como uma garantia fundamental.
Entretanto, a recente decisão também colocou em evidência uma diferença significativa no tratamento dado, pelo STF, ao sigilo fiscal, em comparação ao sigilo bancário.
Ambos os sigilos são objeto de uma mesma tese, firmada pelo STF no julgamento do Tema nº 990 da Repercussão Geral (RE nº 1.055.941), que afirmou a constitucionalidade do compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), anteriormente conhecida como COAF, que contêm dados bancários sigilosos, assim como dos procedimentos fiscalizatórios da Receita federal, com órgãos de persecução penal, sem a necessidade de prévia autorização judicial:
“1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios”.
Assim, a tese fixada assentou que é possível o compartilhamento dos relatórios de inteligência da UIF/COAF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil com os órgãos de persecução penal, ou seja, se constatadas, pela UIF ou pela Receita Federal, no curso das suas atividades de fiscalização, ilegalidades eventualmente praticadas pelo cidadão, deve ser feita a comunicação aos órgãos de persecução penal, sem necessidade de autorização judicial prévia.
O problema é que a tese fixada não deixa claro se essa comunicação entre a Receita e a UIF/COAF, de um lado, e as autoridades de investigação criminal, do outro, pode ou não ser uma via de mão dupla. Quer dizer, o Tema 990 não é expresso, se seria constitucional apenas as comunicações, sem autorização judicial, espontaneamente enviadas pela Receita e pela UIF, quando se deparam com alguma ilegalidade; ou se também estaria autorizada a requisição direta de informações, que partisse no sentido inverso, da Polícia ou do Ministério Público, provocando a Receita ou a UIF a fornecer informações sigilosas dos cidadãos.
Isso tem dado margem a que os Tribunais Superiores adotem um posicionamento mais permissivo, com os pedidos diretos de informação, das autoridades de persecução penal para a UIF/COAF, para que esta produza Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) sobre pessoas supostamente investigadas.
Cumpre esclarecer, que os Relatórios de Inteligência Financeira (RIF) podem ser classificados em duas categorias principais. A primeira é o RIF de ofício, que é elaborado espontaneamente pelo UIF/COAF quando há suspeitas de lavagem de dinheiro, com base em comunicações enviadas por entidades obrigadas – instituições financeiras, joalherias, mercadores de arte, e outras categorias, identificadas na Lei de Lavagem de Dinheiro. Esses relatórios são, então, encaminhados às autoridades de persecução penal, fundamentando-se no artigo 15 da Lei 9.613/98.
A segunda categoria é o RIF a pedido ou por intercâmbio. Neste caso, os relatórios são gerados pelo UIF/COAF em resposta a solicitações das autoridades de persecução penal. Ao contrário dos RIFs de ofício, esses não têm previsão legal expressa na Lei 9.613/98. O processo se dá da seguinte forma: a autoridade interessada preenche informações sobre uma investigação em andamento no sistema SEI-C do UIF/COAF. Se houver comunicações suspeitas anteriores ou RIFs já produzidos, o UIF/COAF encaminha essas informações à autoridade requerente. Vale destacar que não há diretrizes claras sobre o nível de detalhamento que as autoridades devem fornecer ao UIF/COAF para o compartilhamento das informações, nem sobre o conteúdo que deve constar no RIF.
Sendo assim, a referida decisão do STF no Tema de Repercussão Geral 990 não estabeleceu limites sobre a atuação dos órgãos de inteligência diante das requisições diretas do Ministério Público e da Polícia, de compartilhamento de RIFs e, por essa razão, alguns tribunais têm divergido sobre o assunto, ora autorizando o compartilhamento direto dos relatórios, ora declarando a nulidade das provas obtidas por iniciativa das autoridades de persecução penal, sem autorização judicial prévia. Aos poucos, no entanto, vem se estabelecendo um entendimento de que seria, sim, admissível essa requisição direta, desde que respeitados certos parâmetros.
Por exemplo, em 2021, o STF decidiu no HC 201.965/RJ que é nulo o Relatório de Inteligência Financeira (RIF) produzido a pedido dessas autoridades sem a prévia instauração de uma investigação. A Corte considerou que a realização de diligências pelo UIF/COAF junto a instituições financeiras configura uma “pescaria probatória” (fishing expedition).
No dia 2 de abril de 2024, na RCL 61.944, o STJ reafirmou que não era legítimo o compartilhamento de RIFs a pedido ou por intercâmbio, conforme estabelecido no RHC 147.707. No entanto, a Primeira Turma do STF reformou essa decisão, entendendo que o compartilhamento de RIFs a pedido foi autorizado no julgamento do tema 990.
Em 28 de agosto de 2024, o Ministro Alexandre de Moraes, em decisão monocrática na RCL 70.191, reformou a decisão da Quinta Turma do STJ. Moraes argumentou que as Vistorias de Procedimentos de Investigação (VPIs) são procedimentos formais e atendem aos requisitos estabelecidos no tema 990.
No dia 25 de setembro de 2024, a Quinta Turma do STJ reiterou seu entendimento de que não é possível o compartilhamento de RIFs a pedido ou por intercâmbio antes da instauração formal da investigação em inquérito (ED no AgRg no RHC 188.388). A RCL 70.191 iniciou em julgamento virtual, com sessões ocorrendo entre 27 de setembro e 4 de outubro e até o momento, foram proferidos votos do Ministro Alexandre de Moraes, relator, sustentando que a decisão liminar que admite o compartilhamento antes da instauração do inquérito e do Ministro Flávio Dino, que acompanha o relator. Em seguida, o Ministro Cristiano Zanin pediu destaque no julgamento e por isso aguarda-se a inclusão na pauta de sessão física.
Ou seja, para o Supremo Tribunal Federal, parece que, desde que haja uma investigação previamente instaurada, com um objeto delimitado, seria, então, possível às autoridades de persecução penal requisitar diretamente, sem autorização judicial, informações financeiras à UIF.
Nesse sentido, um dado curioso levantado pelo Relatório de Gestão Integrada do COAF[1], é que em 2023 foram recebidas 7,6 milhões de comunicações dos sujeitos obrigados – os bancos, joalherias, mercadores de arte etc., a quem a Lei impõe o dever de comunicar ao UIF/COAF operações de valor elevado –, sendo quase 5 milhões provenientes de instituições bancárias. Isso demonstra que a maior parte das informações que fundamentam a elaboração dos Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) é de origem bancária. Ou seja, a elaboração de um RIF quase sempre implica a violação ao sigilo bancário do investigado. E a autorização de requisição direta do RIF, pelo Ministério Público ou pela Polícia, acaba por representar uma quebra de sigilo bancário sem autorização judicial.
Essa abordagem mais flexível em relação ao sigilo bancário sugere uma relativização dos direitos, contrastando com a rigidez aplicada ao sigilo fiscal na recente decisão do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.393.219. Essa diferença de tratamento levanta questionamentos sobre a uniformidade na proteção dos direitos constitucionais, já que tanto o sigilo fiscal quanto o bancário são extraídos do mesmo artigo 5º da Constituição.
Por essa razão, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), para conferir uma interpretação conforme à Constituição ao artigo 15 da Lei nº 9.613/1998, que autoriza o compartilhamento de informações pelo UIF/COAF às autoridades de persecução penal. O objetivo é compatibilizar essa disposição com os direitos fundamentais inscritos no artigo 5º, incisos X, XII e LXXIX, da Constituição.
A Lei diz o seguinte:
“Art. 15. O COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de crimes previstos nesta Lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito.”
Nesse contexto, o CFOAB argumenta que as possibilidades de atuação da UIF/COAF são diversas e diferenciadas. O compartilhamento de dados espontâneo (de ofício) e o compartilhamento a pedido (por requisição) não seguem a mesma sistemática e, portanto, não devem ser submetidos ao mesmo tratamento, às mesmas regras ou ao mesmo controle de legalidade. O primeiro, de ofício, geralmente ocorre em situações onde há indícios claros de atividades ilícitas, enquanto o segundo se baseia em pedidos específicos que podem não ter a mesma fundamentação. Essa diferença já implica diferentes níveis de controle e responsabilidade. As requisições de dados, por sua natureza, devem sempre ser precedidas por uma autorização judicial, garantindo que haja uma avaliação imparcial e criteriosa da justa causa para violação às garantias constitucionais do cidadão.
O Poder Judiciário desempenha um papel fundamental na proteção dos direitos e garantias individuais. A necessidade de autorização judicial para a requisição de dados não deve ser vista como um obstáculo ao trabalho das autoridades de persecução penal, mas sim como uma proteção necessária que resguarda o Estado de Direito. A prática de submeter as requisições das autoridades de investigação à análise judicial não apenas confere maior segurança ao processo, mas também promove a transparência e a responsabilidade nas ações do Estado.
Assim, a exigência de controle judicial nas requisições de dados à UIF/COAF não pode ser vista como um entrave ao sistema de persecução penal, pois pode resultar em graves violações à intimidade e à privacidade dos indivíduos. Com a EC 115/2022, que consagra a proteção de dados pessoais como um direito fundamental, é imprescindível que qualquer ato que envolva o compartilhamento de informações pessoais (fiscal ou bancário) seja submetido ao crivo do Poder Judiciário.
Ademais, permitir que órgãos de persecução penal tenham acesso irrestrito a informações financeiras pode levar a abusos e a devassas injustificadas na vida privada dos cidadãos. O controle judicial é uma salvaguarda essencial para assegurar que os direitos constitucionais sejam respeitados e que a coleta de dados não ocorra de maneira arbitrária.
Diante do exposto, é evidente que a autorização judicial para a requisição de dados à UIF é uma medida necessária para assegurar o respeito aos direitos fundamentais. O equilíbrio entre a eficácia das investigações e a proteção da privacidade deve ser uma prioridade em um Estado democrático de direito.
Dessa forma, espera-se que o Supremo Tribunal Federal dê, ao sigilo bancário, o mesmo tratamento dado ao sigilo fiscal no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.393.219, e estabeleça que o compartilhamento de relatórios de inteligência financeira por requisição, sem prévia autorização judicial, não encontra amparo constitucional, uma vez que viola os direitos fundamentais à intimidade, privacidade, sigilo e proteção de dados, conforme previsto nos artigos 5º, incisos X, XII e LXXIX da Constituição Federal, comprometendo assim o Estado Democrático de Direito.[1] https://www.gov.br/coaf/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/publicacoes-do-coaf-1/rig-coaf-2023.pdf – acesso em 8/10/2024.