Por Miguel Katz Zagury Fragelli
No último dia 13 de setembro, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) aprovou cinco novas súmulas em matéria de direito penal. Dentre essas, destaca-se a de número 658, segundo a qual “o crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias, como em razão de substituição tributária”. Isso porque, com essa redação, esse enunciado pode causar sérios problemas ao ser aplicado.
Mas, antes de se passar ao exame dessa súmula, esclarece-se que este artigo não tem como objetivo analisar a tipicidade penal da conduta de declarar, mas não recolher, o valor de ICMS referente a operações próprias, do que discordamos. É que, como esse entendimento ganha cada vez mais adesão nos tribunais brasileiros, devemos interpretá-lo a fim de conferir maior racionalidade a essa figura delitiva, para que não se torne uma expansão indevida do poder punitivo. Nesse sentido, tornam-se necessárias algumas considerações sobre a Súmula n. 658 do STJ.
Como se sabe, a Súmula de um Tribunal é formada por enunciados que resumem os seus entendimentos consolidados. Foi criada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Ministro Victor Nunes Leal, com a ideia de registrar posicionamentos que não precisariam mais ser discutidos e, assim, auxiliar os juízes na decisão de casos.1
Em um primeiro momento, até poderia se considerar que esse verbete reflete uma posição consolidada no STJ. Afinal, no HC n. 399.109/SC, julgado em agosto de 2018, a Terceira Seção definiu que constitui crime de apropriação indébita tributária (artigo 2º, inciso II, da Lei n. 8.137/1990) a conduta de declarar e não repassar ao Fisco o valor de ICMS próprio, que é incorporado ao valor do produto ou serviço pelo qual paga o consumidor ou adquirente.2
Nessa ocasião, foi solucionada divergência entre a Quinta e a Sexta Turma do Tribunal, que discordavam a respeito da (a)tipicidade dessa conduta. Assim, foi firmada a posição do Superior Tribunal de Justiça a respeito do inadimplemento de ICMS próprio, que agora estaria exposta na Súmula n. 658.
Ocorre que essa questão chegou ao STF, que a apreciou ao julgar o RHC n. 163.334 em dezembro de 2019. Após o julgamento, foi fixada, com repercussão geral, a seguinte tese: “o contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”.3
Com essa tese, o STF adotou posição que possui importante diferença em relação à do STJ, mesmo que concorde que o não recolhimento de ICMS próprio constitui o crime de apropriação indébita tributária. Isso porque, para o Supremo, uma pessoa só pratica esse delito quando presentes dois requisitos em sua conduta: contumácia e dolo de apropriação.4
Isto é, enquanto para o STJ quem deixa de recolher o ICMS próprio, devidamente declarado, pratica apropriação indébita tributária, para o STF só há crime se houver contumácia e dolo de apropriação. Trata-se de importante diferença, uma vez que, para impedir que se criminalize a inadimplência, a posição do Supremo impõe limites para a configuração desse delito.5
No entanto, da forma como aprovada a Súmula n. 658 do STJ, foram eliminadas as condições postas pelo STF para a prática desse delito. Ao apenas afirmar que o crime de apropriação indébita tributária pode acontecer em operações de ICMS próprio, esse enunciado permite que um inadimplente seja tratado como criminoso, o que não pode ser admitido.
Não é possível saber com certeza o porquê de os requisitos estabelecidos pelo STF não terem sido incluídos nesse verbete. Contudo, um bom indicativo disso pode ser extraído dos julgados que são referenciados como motivadores da Súmula. Da análise desses, constata-se que todos foram proferidos entre agosto de 2018 e junho de 2019,6 ou seja, antes que o Supremo estabelecesse os limites da contumácia e do dolo de apropriação.
Portanto, é claro que esses julgados não tinham como abordar esses requisitos. Mas, até por conta disso, conclui-se que essas decisões estão um tanto quanto desatualizadas, sobretudo quando considerado que, em casos mais recentes, o STJ adotou os requisitos estipulados pelo STF para interpretar se certas condutas podem ser classificadas como apropriação indébita tributária.
No HC n. 569.856/SC, por exemplo, a Sexta Turma decidiu que o não pagamento de ICMS declarado por seis meses aleatórios não demonstra nem a contumácia e nem o dolo de apropriação e, logo, absolveu pessoa que havia sido condenada por esse crime.7 Nesse sentido, no REsp n. 1.865.750/SC, esse mesmo órgão também reverteu condenação que havia considerado como típica uma conduta de não recolher ICMS por três meses.8
Essa situação chega ao extremo quando consideramos as decisões monocráticas proferidas pelos Ministros Rogerio Schietti Cruz e Sebastião Reis Júnior no REsp n. 1935/696/SC e no HC n. 775.609/SC, respectivamente.9 Em ambos os casos, pessoas foram condenadas pelo não recolhimento de ICMS em um único mês. Mas, considerando que o inadimplemento por apenas um mês não é suficiente para caracterizar a contumácia e o dolo de apropriação, os Ministros corretamente absolveram os acusados.
Esses quatro julgados evidenciam a importância dos limites impostos pelo STF. Sem os requisitos da contumácia e do dolo de apropriação, uma pessoa que não recolhesse o ICMS em um mês específico poderia ser condenada por apropriação indébita tributária. Seria a criminalização da mera inadimplência.
Ademais, os casos supracitados indicam que o STJ vem tendo um importante papel de interpretar as condições fixadas pelo STF, a fim de definir em quais situações a contumácia e o dolo de apropriação estão ou não presentes. Já tendo aderido ao entendimento do Supremo e alterado a sua posição original, o STJ vem delimitando a configuração do delito de apropriação indébita tributária, cumprindo o seu papel de uniformização da jurisprudência.
Não à toa, na Edição n. 174 do seu periódico Jurisprudência em Tese, publicada em agosto de 2021, o STJ aprovou enunciado em linha com a tese fixada pelo STF: “a conduta de não recolher imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços – ICMS em operações próprias ou em substituição tributária enquadra-se formalmente no tipo previsto no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/1990 (apropriação indébita tributária), desde que comprovado o dolo de apropriação e a contumácia delitiva”.
Nesse enunciado, está expressamente previso que, em operações próprias de ICMS, a apropriação indébita tributária só estará configurada se houver dolo de apropriação e contumácia delitiva. Contudo, o mesmo não pode ser dito sobre a Súmula n. 658, que apenas estipula que “o crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias, como em razão de substituição tributária”.
Diante desse cenário, não é de se acreditar que, a partir da publicação desse enunciado sumular, o STJ regrida no seu posicionamento e passe a ignorar a posição do STF. O que nos preocupa é a forma como essa súmula pode ser aplicada em instâncias inferiores.
Afinal, a Súmula é o registro de posicionamentos que não precisam mais ser discutidos em um Tribunal, pois já consolidados. Quando se trata de um enunciado de um tribunal superior, é comum que os tribunais de todo o país entendam que também não precisam mais debater aquela matéria, que já está nacionalmente pacificada.
Da leitura da Súmula n. 658 do STJ, pode se concluir que o delito de apropriação indébita tributária pode ser praticado em operações próprias de ICMS independentemente da contumácia e do dolo de apropriação. Logo, é possível que instâncias ordinárias, tendo em vista apenas esse enunciado, passem a condenar pessoas por esse crime sem se atentar aos requisitos estipulados pelo STF.
É dizer: mesmo que o STJ já tenha internalizado o entendimento do Supremo, isso não está exposto no verbete em questão. Assim, ao invés de facilitar decisões de juízes, essa súmula pode levar magistrados a decidir em desacordo com a posição dos tribunais superiores.
Nesse cenário, o STJ pode se ver obrigado a reafirmar algo que, ao menos em tese, não seria mais necessário: em operações próprias, só há apropriação indébita tributária se estiverem comprovados o dolo de apropriação e a contumácia delitiva.
Mas, mais grave do que é isso, é possível que pessoas sejam equivocadamente condenadas e sofram com o constrangimento disso até que o caso delas chegue às instâncias extraordinárias. Em outras palavras, é possível que um inadimplemento ocasional seja tratado como crime.
Portanto, evidente que a Súmula n. 658 do STJ, por ser incompleta, pode causar problemas na sua aplicação prática. Assim, o ideal seria que fosse alterada, ou até mesmo cancelada, antes que isso ocorra.