Por Nicole Mizrahi Dentes e Alice Pereira Kok
Não é demais afirmar que o delito de lavagem de capitais é um dos mais controversos crimes econômicos no Direito brasileiro, tanto doutrinária, quanto jurisprudencialmente. Seja pela abrangência de suas formas típicas, marcada pela multiplicidade de condutas puníveis e pela forma sucinta com que são legalmente definidas (1), seja pela omissão – intencional ou não – do legislador quanto a pontos substanciais do diploma legal, a Lei 9.613/1998 vem, há mais de duas décadas, suscitando os mais enérgicos debates entre operadores do Direito.
Dentre as discussões que protagonizam o cenário jurídico-criminal, insere-se aquela acerca da punibilidade da chamada autolavagem, situação na qual os sujeitos que cometem o delito prévio, também realizam ações posteriores tendentes a reinserir os valores obtidos com a prática delituosa na economia formal. Ou seja, tanto o crime antecedente (corrupção, estelionato etc.), quanto a lavagem dos capitais dele provenientes são imputáveis ao mesmo agente.
A discussão se assenta, sobretudo, na possibilidade (ou não) de se responsabilizar criminalmente a autolavagem, especialmente em consideração ao silêncio do legislador nacional a respeito. De fato, no Brasil, parcela da doutrina defende não ser possível a punição por lavagem ao autor da infração penal antecedente, por sustentar, dentre outros argumentos, ser vedada a criação de normas incriminadoras pelos Tribunais, em face da omissão da Lei(2) (a que se dá o nome de analogia in malam partem). Ou também, há quem sustente ser impossível a punição por lavagem ao autor da infração penal antecedente, vez que a ocultação ou dissimulação dos valores estaria compreendida como desdobramento lógico causal do crime anterior, exatamente por se entender “a conduta natural de que quem pratica um delito e dele obtém benefício patrimonial é a ocultação dos valores obtidos de forma criminosa”(3). É dizer, a ocultação ou dissimulação do capital seria mero exaurimento do delito que originou o valor.
Não é essa, contudo, a compreensão firmada de forma majoritária pelos Tribunais Superiores.
Consolidando o atual entendimento jurisprudencial, o STJ divulgou, no último dia 26 de março, a edição nº 166 da “Jurisprudência em Teses”, publicação periódica que apresenta um conjunto de teses sobre determinada matéria, com os julgados mais recentes do Tribunal sobre a questão – na edição nº 166, o crime de lavagem de capitais. Afirmou o STJ, então, que “embora a tipificação da lavagem de dinheiro dependa da existência de uma infração penal antecedente, é possível a autolavagem – isto é, a imputação simultânea, ao mesmo réu, da infração antecedente e do crime de lavagem -, desde que sejam demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização da primeira infração penal, circunstância na qual não ocorrerá o fenômeno da consunção”.
Ao fazê-lo, o STJ firmou o posicionamento que, por diversas vezes, já aplicou sobre a matéria a casos concretos (4). Mas não só. Mesmo o STF já, há muito, vem se manifestando pela possibilidade de responsabilização pela lavagem de capitais do autor do delito anterior, tendo ganhado bastante destaque o julgamento da Ação Penal 470 – o Mensalão –, conforme se extrai de trecho da ementa do acórdão:
“A lavagem de dinheiro constitui crime autônomo em relação aos crimes antecedentes, e não mero exaurimento do crime anterior. A Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/1998), ao prever a conduta delituosa descrita no seu art. 1º, teve entre suas finalidades o objetivo de impedir que se obtivesse proveito a partir de recursos oriundos de crimes, como, no caso concreto, os crimes contra a administração pública e o sistema financeiro nacional” (5).
Tanto o STJ, quanto o STF, portanto, interpretaram o silêncio do legislador como autorizador da dupla punição, principalmente pela compreensão de que o bem jurídico tutelado pela norma da lavagem de dinheiro – qual seja, a administração da justiça – difere daquele afetado pelo delito anterior, o que permitiria a punição em concurso material sem que subsista o bis in idem, desde que, nos termos do que reconhecido pelo próprio STJ, quando da publicação da recente edição da “Jurisprudência em teses”, os atos de lavagem sejam diversos e autônomos em relação aos que compõem o crime antecedente.
À primeira vista, o posicionamento firmado pelo Judiciário Brasileiro não surpreende, mas sim, vem acompanhar a maré de flexibilização das imputações por lavagem de dinheiro, ao ampliar as hipóteses de condenação por crimes dessa natureza – somando-se, assim, ao movimento de recrudescimento das punições em relação aos crimes econômicos no país, que vem atender a anseios populares por mais punição, que cada vez mais se infiltram nas decisões e posicionamentos dos tribunais.
Ao mesmo tempo, merece destaque a ressalva feita pelo próprio STJ, na edição nº 166 da “Jurisprudência em Teses”, ao sublinhar, enquanto condição à tipificação da autolavagem, que, somente será possível a imputação desta modalidade quando “demonstrados atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização da primeira infração penal, circunstância na qual não ocorrerá o fenômeno da consunção”. Ao firmar o entendimento jurisprudencial sobre a matéria, o STJ enfatizou que não se tolerará que a acusação, ao incriminar pela autolavagem, exima-se de evidenciar os elementos constitutivos de cada uma das condutas criminosas em discussão, diferenciando-as enquanto atos autônomos entre si.
O destaque dado à ressalva instituída pelo STJ deve-se à pretensão de evitar condenações, a título de autolavagem, do mero exaurimento do crime anterior já imputado a determinado autor, daí a necessidade de distinção dos atos constitutivos de cada uma das condutas delituosas.
E, especialmente neste ponto, merece atenção a questão da definição dos momentos de consumação de cada um dos delitos. Com efeito, a lavagem de dinheiro só pode ter como objeto o produto de um crime antecedente. Em raciocínio lógico, assim, não poderão ser consideradas lavagem de dinheiro, as condutas nas quais inexistente distinção entre a aquisição do bem indevido e a própria tentativa de branqueamento, mormente porque ausente a premissa fundamental do crime de lavagem, qual seja, que os valores a serem lavados lhe sejam antecedentes.
O ônus da acusação, ao oferecer uma denúncia, reside, portanto, na demonstração dessa relação deantecedência dos bens, valores ou direitos provenientes do primeiro ilícito, para com a lavagem de dinheiroimputada – caracterizada, sobretudo, pelos atos posteriores e autônomos tendentes a conferir a aparência de licitude a tais valores. Sem essa demonstração, não se estará diante de conduta criminosa, nos termos do artigo 1º da Lei 9.613/1998. A respeito, resgata-se novamente o julgamento do Mensalão, pelo STF:
“Um réu só pode ser condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro se verificada a ocorrência de atos delituosos distintos. Isto é, se o réu, após ter recebido dinheiro proveniente de corrupção, vier a praticar novos atos delituosos, distintos dos anteriores, com a finalidade de branqueamento de capitais, com o escopo de ‘limpar’ o dinheiro ’sujo” (STF, AP 470, voto do Min. TEORI ZAVASCKI, fls. 55.354).
A exigência – firmada pelo STJ com a fixação da tese acima descrita – da demonstração inequívoca de “atos diversos e autônomos daquele que compõe a realização da primeira infração penal” demonstra que, muito embora exista uma tendência à flexibilização e ampliação dos contornos típicos do crime de branqueamento de capitais, que não foi inicialmente prevista pelo legislador, há também um esforço legítimo, que parte dos Tribunais Superiores, em traçar limites palpáveis e adequados à criminalização da conduta.
Assim, ainda que a autolavagem possa ser punida à míngua de previsão legal expressa, existem balizas norteadoras bastante claras que não podem ser descartadas ou expandidas a critério do operador do direito, com o intuito de criminalizar, também e indevidamente, o mero exaurimento de crime anterior.
NOTAS
1 HORTA, Frederico; TEIXEIRA, Adriano. Da autolavagem de capitais como ato posterior coapenado: elementos para uma tese prematuramente rejeitada no Brasil. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 18, n. 74, p. 08/09, 2019.
2 TAVARES, Juarez, MARTINS, Antônio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias. 1. ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 72.
3 TAVARES, Juarez, MARTINS, Antônio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias. 1. ed. – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020. p. 72.
4 Julgados: AgRg no RHC 120936/RN, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 25/06/2020; APn 940/DF, Rel. Ministro OG FERNANDES, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/05/2020, DJe 13/05/2020; APn 923/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 23/09/2019, DJe 26/09/2019; APn 856/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 18/10/2017, DJe 06/02/2018; REsp 1785866/RO (decisão monocrática), Rel. Ministro FELIX FISCHER, julgado em 01/02/2019, publicado em 13/02/2019; HC 482825/RJ (decisão monocrática), Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 06/12/2018, publicado em 10/12/2018