Por Helena Gobe Tonissi
O debate acerca da moralidade do aborto, complexo e multifatorial, suscitado através do cunho religioso, em violação a laicidade do Estado, resultou em um projeto de lei que se alinha com a nova moda do Poder Legislativo, criminalizar condutas a serviço do clamor social e da manutenção do poder. O PL n. 1904/2024 [1] é mais um projeto desprovido de constitucionalidade, que denota o afastamento de seus entusiastas da realidade do país que deveriam representar.
Na contramão de evidências sociais e científicas, o referido projeto pretende equiparar o aborto de gestação a partir de 22 semanas ao crime de homicídio, mesmo nos casos permitidos por lei: estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia do feto.
E, a despeito da necessidade de um debate cuidadoso e afastado de paixões (para não dizer partidos), a Câmara dos Deputados aprovou, em tempo recorde e em votação simbólica – sem voto nominal -, o requerimento de urgência para sua tramitação. Assim, o projeto que, por previsão regimental (art. 132, III do RICD) [2], deveria tramitar em comissões técnicas, pode ser votado a qualquer momento pelo Plenário, excluindo as principais vítimas dessa proposta do debate e restringindo alterações em sua redação, sob o pretexto de “inadiável interesse nacional da matéria”.
Mas, por trás do discurso declarado, por trás do suposto interesse nacional urgente, escondem-se os verdadeiros propósitos, e, na luta pelo poder, vale tudo, mas nada valem os direitos das mulheres.
No Brasil, quando não realizado em razão de uma das três exceções mencionadas, o aborto é crime, punido com detenção de 1 a 3 anos para a mulher que aborta; reclusão de 1 a 4 anos para o médico ou outra pessoa que provoque aborto com o consentimento da gestante; e reclusão de 3 a 10 anos para quem provoque aborto sem o consentimento da gestante. Caso o projeto seja aprovado, o aborto realizado após 22 semanas de gestação será punido com reclusão de seis a 20 anos em todos os casos, mesma pena prevista ao crime de homicídio simples.
Por outro lado, também no Brasil: conforme princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, Constituição Federal) não basta ter vida, é necessário que ela seja digna; Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inciso III, da Constituição Federal); A saúde é dever do Estado (art. 196 e 198 da Constituição Federal); É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (art. 227 da Constituição Federal); O Estatuto da Criança e do Adolescente, além de diversos direitos, assegura à gestante, através do SUS, atendimento pré e perinatal (Art. 8º do ECA); A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) tem entre suas metas assegurar o acesso universal aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo o planejamento familiar, informação e educação, bem como a integração da saúde reprodutiva em estratégias e programas nacionais; Além de muitos outros dispositivos internos que poderiam ser mencionados que coadunam ao menos com a norma permissiva penal (aborto autorizado pela lei).
No âmbito internacional, o Brasil ratificou a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, da Organização das Nações Unidas (ONU), a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ou Convenção de Belém do Pará (OEA, 1994), elaboradas para eliminar a violência contra a mulher, garantir os seus direitos, e que proíbem atos de tortura. A propósito, compelir a vítima de estupro à manutenção da gestação é concebido como um ato de tortura, especialmente nos casos de vítimas menores de 14 anos, em que o desenvolvimento fisiológico incompleto e inadequado para uma gestação saudável impõe a elas verdadeiro castigo, além dos riscos de anemia, pré-eclâmpsia e eclâmpsia, diabetes gestacional, parto prematuro e partos distócicos [3].
Embora as hipóteses em que o aborto é autorizado já sejam restritivas, a nocividade do projeto e obscurantismo do Parlamento se estende e fica ainda mais evidente quando considerados os dados do nosso país. Nos últimos 10 anos, a média de partos de meninas com menos de 14 anos foi de mais de 20 mil por ano, sendo 74,2% negras [4], possivelmente parindo sem garantia de acesso ao aborto. Aliás, todos esses 20 mil partos por ano são decorrentes de estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), pois o ato sexual com menor de 14 é crime por expressa disposição legal, ainda que não tenha havido violência. Para essa quantidade de partos, de gestações levadas a termo por vítimas de estupro, há, em média, 102 abortos legais por ano [5], o que revela a disparidade existente e o fato de que, mesmos nas hipóteses em que as vítimas estão autorizadas por lei, ainda é irrisório o número de abortos legais que efetivamente acontecem, quando comparado ao volume de vítimas de estupro ou estupro de vulnerável.
O Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2023 [6], registrou que foram denunciados 74.930 casos de estupro (de mulheres e vulneráveis) consumados. Entre as vítimas, 61,4% tinham entre 0 e 13 anos de idade, cujos estupradores, em 86,1% dos casos, são pessoas conhecidas e em 64,4% são seus próprios familiares.
Verifica-se então que as principais vítimas de estupro no Brasil são meninas menores de 14 anos, abusadas por seus familiares, e são elas, portanto, que mais dependem do serviço do aborto legal oferecido pelo SUS em hospitais especializados. Em regra, com a aprovação do projeto, serão crianças revitimizadas, obrigadas a levar adiante uma gravidez resultante de um crime, sem ter a própria vontade considerada. Nesse ponto, estudos atestam que as taxas de mortalidade entre gestantes menores de 14 anos podem ser até 5 vezes maiores do que a de mulheres adultas entre 20-24 anos [7].
Diferentemente do que vem sendo divulgado pelos apoiadores do projeto, como se crianças e mulheres tivessem amplo e fácil acesso ao aborto em razão da atual norma penal permissiva, na prática, o próprio sistema de saúde impõe barreiras de acesso ao direito, como é o caso da Resolução nº 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM) [8], que proíbe a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro.
Aliás, a demanda da bancada evangélica é também uma reação à suspensão pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da ADPF 114, de todos os processos judiciais e procedimentos administrativos e disciplinares provocados pela referida resolução, tendo em vista que o Conselho teria ultrapassado sua competência regulamentar e limitado a realização de procedimento médico reconhecido e recomendado pela Organização Mundial de Saúde e previsto em lei.
Isso porque, a Organização Mundial de Saúde (OMS), por meio do documento Abortion Care Guideline ressaltou que os limites temporais não são baseados em evidências científicas, estando associados ao aumento das taxas de mortalidade materna e a maus resultados de saúde, e que a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional [9]. Além do mais, a OMS também reconhece que a imposição de restrições legais ao aborto não diminui a sua incidência, pelo contrário, contribui para o aumento dos riscos associados aos procedimentos clandestinos, colocando em perigo a vida e a saúde das mulheres.
Contrária às restrições em outro momento impostas pelo Ministério da Saúde, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) se posicionou e orientou pela priorização do abortamento previsto em lei nas etapas mais precoces da gestação, bem como ser dever do médico a imparcialidade, acolhimento, não emitir julgamentos e informar para a gestante todos os seus direitos. No entanto, a Federação, em seus documentos técnicos, como o Protocolo nº 69 “Interrupções da gravidez com fundamento e amparo legais” [10], não limita a assistência a meninas e mulheres em situação de aborto legal à idade gestacional. Nestes casos, há, inclusive, orientações sobre a dose do tratamento adequado para o aborto induzido em idades gestacionais mais avançadas.
O próprio Comitê de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres enviou recomendações ao país, tendo expressado preocupação com o estado do aborto legal no país, fazendo constar que “as mulheres frequentemente enfrentam inúmeras barreiras adicionais, como serviços inadequados de aborto, exigências onerosas que não estão previstas na lei e objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde” [11].
De forma explícita, o PL n. 1904/2024, marginaliza e criminaliza crianças que, por motivos óbvios, não reconhecerão os sinais de gravidez antes do limite temporal imposto, ou que serão coagidas pelo seu estuprador a silenciar a violência, ou mulheres que desconheçam as previsões legais de aborto, em situação de vulnerabilidade socioeconômica, residentes de locais de difícil acesso à saúde, ou com algum impedimento mental, intelectual ou sensorial de longo prazo, além de desconsiderar o fato de que os diagnósticos de malformações geralmente são possíveis após o primeiro semestre da gravidez, e o atraso promovido pelo próprio sistema de saúde que nega, impõe exigências e atrasa a realização do procedimento, mesmo nos casos permitidos por lei.
A redação do projeto, de homens para homens, mais do que desconexa da realidade do país, é um descalabro, depreciativa, cruel e revela a indiferença de seus propositores com as mulheres. Além disso, é uma proposta que ignora todas as consequências psicológicas, fisiológicas, o risco de vida à gestante obrigada a prosseguir com a gestação e enterra anos de avanço em relação aos direitos das mulheres, arduamente conquistados. Torna-se evidente o fracasso tanto da sociedade quanto do Estado, quando a vítima é impedida de acessar a rede pública de saúde e forçada a prosseguir com uma gestação indesejada ou recorrer ao aborto clandestino inseguro.
Não fossem suficientes as diversas violações decorrentes da criminalização, optou-se pela imposição de penas desproporcionais às mulheres. Em todos os casos, inclusive as exceções de aborto legal, as mulheres estarão sujeitas a penas maiores que a de seus estupradores: a eles há previsão de uma pena máxima de reclusão de 10 anos, podendo a condenação chegar a 15 anos para os casos de estupro de vulnerável. De modo que, a sanção ao abortamento tardio reforça e legitima a condição da mulher como inferior, submetendo-a a tratamento discriminatório, não autorizado por qualquer parâmetro normativo nacional ou internacional.
Ainda que o PL preveja a hipótese de perdão judicial, importa rememorar que ele não significa absolvição e tem como pressuposto, a condenação do réu. Consequentemente, está sujeito à procedência da acusação, sendo, portanto, uma faculdade que o magistrado poderá exercitar quando entender conveniente, mas que pressupõe a existência do delito, com condenação às custas e registro do nome no rol de culpados. As alterativas às vítimas são então: as penas pelo crime de aborto tardio, gerar um filho de seu estuprador, ou, depois de toda a violência já sofrida, se tiverem sorte, verem a sua condenação obstada pelo perdão de um juiz bondoso [12].
A pretensão ilegítima de expor mulheres a tamanha violência é naturalmente fruto de crenças de natureza religiosa e moral violadoras do Estado Democrático de Direito, que tem, em sua essência, a laicidade. De igual forma, nunca foi interessante para os membros do Congresso, fomentadores de mais projetos de poder do que de leis, observar os princípios da intervenção mínima e da reserva legal, contribuindo para o próprio descrédito das leis penais. Por trás do discurso de repressão de condutas que afligem os interesses de certa bancada, a lei é utilizada como capital político, ainda mais quando diante da proximidade das eleições, por grupos que se alimentam de retrocessos de política criminal.
A criação de leis penais geradas como primeira resposta para saciar o clamor público quanto a interrupção da gravidez tardia é atrativa e desonera o parlamento do dever de cumprir o disposto na Constituição Federal e promover uma educação de qualidade, incluindo educação sexual e acesso à saúde (planejamento familiar, métodos contraceptivos de longa duração, acesso à informação, rede estruturada para denúncias). São leis que acabam inoperantes, pois descumprem a subsidiariedade e fragmentariedade de um Direito Penal que só é legítimo, quando inevitável, que deveria estar reservado para respostas que os outros âmbitos do direito não são capazes de fornecer, para condutas que abalam a ordem pública e a segurança da sociedade (ultima ratio).
É então um projeto que transforma a mulher, e não o estuprador, no inimigo: é a mulher, menos cidadã, menos sujeita de direitos.
[1] PL 1904/2024. Disponível em: < https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2425262&filename=PL%201904/2024>. Acesso em 18/06/2024.
[2] Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: < https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/regimento-interno-da-camara-dos-deputados/arquivos-1/RICD%20atualizado%20ate%20RCD%2011-2024.pdf>. Acesso em 18/06/2024.
[3] Protocolo n. 69 da Febrasgo. p. 19. Disponível em: < https://www.febrasgo.org.br/images/pec/anticoncepcao/n69—O—Interrupes-da-gravidez-com-fundamento-e-amparo-legais.pdf>. Acesso em 18/06/2024.
[4] Dados do levantamento do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/145852-apesar-da-redu%C3%A7%C3%A3o-%C3%ADndices-de-gravidez-na-adolesc%C3%AAncia-no-brasil-ainda-est%C3%A3o-acima-da-m%C3%A9dia. Acesso em 18/06/2024.
[5] https://abortonobrasil.info/#abortolegal0. Acesso em 18/06/2024.
[6] Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2023. p. 15. Disponível em: <https://apidspace.universilab.com.br/server/api/core/bitstreams/e84399ab-7cf2-4411-b893-35ce521cbc95/content>.
[7] Protocolo n. 69 da Febrasgo.
[8] Resolução nº 2.378/2024 do Conselho Federal de Medicina (CFM). Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2024/2378>.
[9] Abortion Care Guideline, ONU. Disponível em: <https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/349316/9789240039483-eng.pdf?sequence=1>.
[10] Protocolo n. 69 da Febrasgo.
[11] https://catarinas.info/querem-que-criancas-sejam-maes-perguntam-organizacoes-a-deputados-sobre-proposta-que-ataca-aborto-legal/. Acesso em 18/06/2024.
[12] Parecer do CFOAB a respeito do PL n. 1904/24 https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/06/Parecer-PL-1904_2024-CFOAB-final.pdf