A ocorrência de fraudes em pedidos de reembolso para planos de saúde – prática que ganha novas possibilidades e intensidade diante dos avanços tecnológicos – afeta significativamente o funcionamento das operadoras de saúde e, consequentemente, o próprio direito à vida e à dignidade humana. Conheça os aspectos penais das práticas fraudulentas que vêm sendo implementadas.
Por Alvaro Augusto Orione Souza e Helena Gobe Tonissi
Presentes em todas as civilizações, as fraudes desde sempre vêm sendo um problema para os mais diversos tipos de organização. Mas a possibilidade de um golpista enriquecer, abusando da confiança que lhe é depositada pelas instituições, ganhou maior impulso com o avanço da tecnologia e a implementação de inovações científicas inerentes à atual sociedade de risco global.
Nesse cenário, as operadoras de saúde não ficam isentas. No ano de 2017, segundo dados do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) [1], as fraudes custaram ao setor, no Brasil, mais de 15 bilhões de Reais. Assim, considerando a saúde como um bem indisponível, de caráter eminentemente social, bem como os prejuízos que as fraudes causam à prestação dos serviços de saúde a todos os demais usuários, há urgente necessidade de intervenção estatal, por meio da repressão e punição criminal dessas condutas.
Com a implementação de mecanismos avançados de detecção de fraude, as operadoras de saúde têm constatado irregularidades praticadas tanto por parte de beneficiários dos planos de saúde, como por parte de certos prestadores de serviços médicos. Há uma estimativa de que essas condutas atingem 20% dos procedimentos cobertos pelos planos [2].
Entre as seis modalidades de operadoras de saúde previstas pela Lei de Planos de Saúde, ao menos as seguradoras são obrigadas a ofertar aos segurados a possibilidade de livre escolha por médicos, laboratórios e hospitais, com o posterior reembolso do valor desembolsado. Além do percentual de reembolso depender do tipo de plano contratado, para que a operadora de saúde realize a restituição, é necessário que ocorra a comprovação do desembolso pelo conveniado.
De modo que, é apenas depois de utilizar o serviço escolhido, desembolsar o valor para o pagamento e recolher um comprovante de pagamento, que o beneficiário pode realizar a abertura do pedido de reembolso perante a operadora de saúde. Assim, com a avaliação do cumprimento de todas as formalidades pelo conveniado, a operadora procede ao reembolso, nos termos contratados.
Trata-se de um sistema de repartição simples, na medida em que é com a contribuição (em regra mensal) dos beneficiários que há a formação do fundo mutual, que irá custear os reembolsos [3]. Portanto, não há poupança individual. Por isso também a necessidade de a operadora de saúde analisar com cautela o cumprimento dos requisitos pelos beneficiários que optam pela livre escolha dos profissionais ou serviços de saúde, prezando pela correta gestão dos recursos coletivos.
E é justamente nessas solicitações de reembolso que as operadoras de saúde vêm constatando graves fraudes, envolvendo beneficiários e prestadores de serviços que visam obter vantagem indevida às custas dessa política.
Há uma modalidade de fraudes em que o segurado, utilizando-se do procedimento regular de reembolso, por consultas ou exames cobertos pelo plano, mas realizados na rede particular, apresenta recibos ou notas fiscais falsos, a título de “comprovação” de um desembolso que, na verdade, nunca aconteceu, pleiteando receber valores que nunca dispendeu.
O beneficiário simula, para a operadora de saúde, a realização de consultas e procedimentos de forma particular, quando, na verdade, nem sequer teriam acontecido os atendimentos correspondentes. Assim, faz a solicitação sem que tenha efetuado o necessário desembolso para a autorização do reembolso.
Outra prática que vem sendo constatada pelas operadoras de saúde, envolve a atuação de prestadores de serviço que não fazem parte da rede credenciada do plano de saúde, mas que se passam por agente credenciado e enganam o próprio segurado, induzindo-o ao erro de que o seu procedimento teria sido coberto pelo plano. Esses prestadores de serviço colocam seus serviços à disposição dos conveniados como se fizessem parte da rede credenciada das operadoras de saúde. Inicialmente alegam aos pacientes não ser necessário o desembolso, justificando que o trâmite com relação ao pagamento ocorreria diretamente com o convênio, de modo a tornar os serviços mais atrativos, sem arcar com os custos de credenciamento.
Após simular aos pacientes que os procedimentos foram cobertos diretamente pelo plano de saúde, pleiteiam junto às operadoras de saúde o reembolso, se passando pelos beneficiários. Para tanto, forjam documentos de “quitação” dessas despesas médicas, e entram com o pedido de reembolso em nome dos segurados, também sem que tenha ocorrido o desembolso pelo paciente.
É conhecida a diferença do reembolso de serviços contratados de forma particular pelos beneficiários, da cobertura de procedimentos realizados por meio de profissionais e hospitais credenciados, mantidos e oferecidos diretamente pela operadora do plano de saúde. Para se tornar um prestador credenciado às operadoras de saúde, o agente ou estabelecimento deve atender a uma série de requisitos de qualidade – o que inevitavelmente implica em maiores custos de operação.
De modo que é mais vantajoso, para os profissionais ou estabelecimentos, receber, no lugar dos usuários, os “reembolsos” pelos serviços prestados, supostamente, na modalidade particular. Outra vantagem indevidamente percebida por esses agentes é o ganho de imagem de se fazerem passar por integrantes da rede credenciada do plano – o usuário, que nessa modalidade não raro também é enganado, pensa que está utilizando os serviços com o padrão de qualidade da sua operadora, quando muitas vezes está à mercê de médicos e hospitais que justamente não conseguem atender aos requisitos mínimos para integrarem a rede credenciada.
Verifica-se então que, para a viabilização desses reembolsos fraudulentos, ou seja, para comprovar um pagamento que nunca ocorreu, o beneficiário, ou o prestador de serviço malicioso, pode incorrer em uma série de condutas criminosas, entre elas: falsificação de documento particular (art. 298 do Código Penal), consistente na falsificação dos recibos médicos; falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal), tendo em vista que insere nas requisições de reembolso declaração falsa de quitação; uso de documento falso (art. 304 do Código Penal), já que os documentos falsificados são inseridos nas solicitações de reembolso; e, por fim, estelionato (art. 171 do Código Penal) na obtenção dos valores reembolsados, que consistem em vantagem ilícita auferida mediante a fraude empregada. Ademais, considerando que os pedidos de reembolso, na segunda modalidade de fraude, em regra são abertos pelos prestadores do serviço, em alguns casos, até mesmo sem a autorização dos pacientes, pode-se tipificar, também, a conduta prevista no crime de falsa identidade (art. 307 do Código Penal), pois os agentes abrem a solicitação se passando pelos beneficiários.
A despeito de os expedientes fraudulentos empregados serem, muitas vezes, escandalosos, e de o número de episódios vir aumentando nos últimos tempos, o próprio sistema de proteção ao usuário de planos de saúde, atualmente em vigor, apresenta falhas que acabam por beneficiar os golpistas, tolhendo as possibilidades de as operadoras de saúde se defenderem desses crimes.
Isso porque, como forma de compelir as operadoras a realizarem os reembolsos fraudulentos, é comum que os golpistas prossigam com a abertura de Notificações de Intermediação Preliminar (NIP) contra os planos de saúde, perante a Agência Nacional de Saúde (ANS). Trata-se de procedimento utilizado para solucionar, de forma administrativa, no âmbito da ANS, impasses entre beneficiários e operadoras de planos privados de assistência à saúde [4], como nos casos em que os usuários recebem negativas indevidas de cobertura, por exemplo.
Como a NIP, na sua origem, por certo foi idealizada para amparar o usuário honesto, e como a celeridade na resolução dos impasses entre usuário e operadora pode, a depender da situação, ser literalmente um caso de vida ou morte, o procedimento administrativo desse instituto é extremamente engessado, e é mínima a margem para que a operadora se defenda das alegações do “usuário” reclamante – por exemplo, produzindo prova das minúcias do esquema fraudulento em que o pedido de reembolso eventualmente recusado estaria inserido.
A abertura da NIP é, desse modo, uma forma de forçar a empresa ao pagamento dos reembolsos fraudulentos, pois a praxe da ANS é, de maneira sumária, sem dilação probatória ou ampla defesa às operadoras, arbitrar a questão a favor do “usuário” reclamante, sujeitando o plano de saúde à aplicação de multas vultosas, que facilmente ultrapassam os valores dos próprios procedimentos médicos.
Assim, sopesada a multa que lhe pode ser aplicada pela ANS, muitas vezes passa a ser menos oneroso, para a empresa, a realização do pagamento do suposto reembolso, sem que de fato tenha sido comprovado o desembolso por parte do usuário.
Ocorre que, a abertura de notificações fraudulentas, visando o enriquecimento ilícito, desvirtua a lógica da Lei nº 9.656/98 e contribui para a sobrecarga e morosidade no atendimento das demandas das operadoras que envolvem um dos bens mais sensíveis na vida, que é a saúde, em detrimento do seu bom funcionamento e, consequentemente, em prejuízo de toda a sociedade.
Assim como no primeiro caso, quando são feitas as notificações na ANS, são realizadas declarações falsas com o fim de criar obrigação, conduta que consiste em crime de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal). Também é indispensável para a perpetração da fraude que o prestador de serviço utilize novamente os documentos falsos que instruíram os pedidos de reembolso (art. 304 do Código Penal), e, nos casos em que o fraudador é o prestador do serviço de saúde, fazendo-se passar pelo usuário, pode incidir novamente o crime de falsa identidade (art. 307 do Código Penal).
Praticam essa conduta com o objetivo de obter vantagem indevida, consistente no reembolso pleiteado de forma fraudulenta, mediante ardil representado pela falsidade ideológica, em prejuízo alheio, da peticionária, induzindo-se a erro, além da operadora de saúde e dos pacientes, a própria ANS. Portanto, fazem-se presentes as elementares típicas do crime de estelionato (art. 171 do Código Penal).
Por fim, no caso dos prestadores de serviço que se passam por credenciados da rede do plano de saúde, estes acabam por incorrer também na conduta prevista no artigo 7º, inciso VII, da Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo, que consiste em induzir o consumidor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária [5].
Dito isso, muito embora as facilidades proporcionadas pela modernidade impulsionem a perpetuação de condutas criminosas, o aperfeiçoamento das tecnologias também facilita o cruzamento de dados e informações que auxiliam na detecção das fraudes pelas operadoras de saúde. Nesse ponto, importa enfatizar que os delitos contra a saúde são delitos que prejudicam outros direitos igualmente fundamentais, o próprio direito à vida e à dignidade humana, representando eles um valor essencial para a existência.
Além de configurarem uma criminalidade complexa, tendo em vista que são condutas que envolvem mais de um ilícito, as fraudes contra as operadoras de saúde denotam total desrespeito aos demais beneficiários, responsáveis por alimentar com as suas mensalidades, os recursos do fundo coletivo, bem como impactam significativamente em toda a gestão das operadoras, seja em questões financeiras, de segurança ou mesmo relativas à própria imagem da empresa perante os demais conveniados.
Por isso a importância dos mecanismos de controle e prevenção de fraudes pelas operadoras de planos de saúde. Mas isso só não basta. É necessário que o aparato de persecução penal do Estado esteja apto e disposto a reprimir esse tipo de delito, sempre que os planos de saúde o levarem ao seu conhecimento; bem como que o aparato estatal regulatório se faça mais sensível aos casos de fraude que vêm vitimando as operadoras, proferindo decisões administrativas menos automáticas e intransigentes, distinguindo os usuários com demandas legítimas dos estelionatários que batem às portas da Agência Nacional de Saúde.
[1] Disponível em: https://www.iess.org.br/taxonomy/term/2471?page=1. Acesso em 11 de janeiro de 2023.
[2] Disponível em: https://www.abramge.com.br/portal/images/simplefilemanager/538405ed5ca087.79613941/6dicasparaprevenirfraudescontraplanosdesade.pdf. Acesso em 11 de janeiro de 2023.
[3] VALENTE, Vera. CARLINI, Angela. Reembolso sem desembolso e as fraudes nos seguros de saúde. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/378980/reembolso-sem-desembolso-e-as-fraudes-nos-seguros-de-saude>. Acesso em 11 de janeiro de 2023.
[4] Art. 5º, Resolução Normativa 388/2015, da ANS. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/ans/2015/res0388_25_11_2015.html. Acesso em 11 de janeiro de 2023.
[5] Art. 7º, inciso VII, Lei de Crimes contra a Ordem Tributária. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8137.htm. Acesso em 05 de janeiro de 2023. ‘