Por Alvaro Augusto Orione Souza e Miguel Katz Zagury Fragelli
No começo do último mês de novembro, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLC) n. 17/2022, que visa instituir o Código de Defesa do Contribuinte. O texto, que segue agora para revisão do Senado Federal, nasceu com o propósito de estabelecer normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres do contribuinte, a fim de regulamentar a sua interação com a Fazenda Pública.
De fato, em sua versão inicial, o projeto visava implementar apenas normas de direito tributário, a fim de regular a relação do contribuinte com o Fisco – assim, justamente por tratar de normas gerais de direito tributário, foi apresentado como Projeto de Lei Complementar[1]. A justificativa do Código projetado deixa clara a sua intenção de promover maior equilíbrio nessa relação contribuinte/Fisco, a fim de diminuir privilégios estatais da Fazenda Pública que possibilitariam, na ótica do Projeto, a prática de abusos e, assim, oferecer maior proteção ao contribuinte[2].
No decorrer da sua tramitação, no entanto, foram inseridos, no PLC n. 17/2022, dispositivos de caráter penal e processual penal. Sobre isso, cumpre ressaltar que o direito penal brasileiro também é historicamente marcado por uma relação entre Estado e indivíduo na qual o primeiro é privilegiado em detrimento do último.
Contudo, diferentemente do que ocorre em sua parte estritamente tributária, o projeto de Código de Defesa do Contribuinte não prevê dispositivos que tendam a equilibrar essa balança, mas sim normas que em muito podem piorar a situação do indivíduo que se veja na mira do Estado, na seara dos crimes tributários.
Um importante componente, que sempre influiu na dinâmica entre contribuinte e Estado, nos crimes tributários, é o dos efeitos do pagamento ou do parcelamento do débito tributário, sobre o processo penal. Nesse aspecto, as propostas do PLC n. 17/2022 sobre tais efeitos, caso aprovadas, têm o potencial de prejudicar em muito o indivíduo, alterando sensivelmente a forma pela qual a maioria dos casos de direito penal tributário podem ser resolvidos, atualmente.
Afinal, sempre se deve ter em mente que esses delitos foram tipificados a fim de tutelar o bem jurídico da arrecadação tributária, isto é, o instrumento pelo qual o Estado angaria as suas receitas para implementar os seus objetivos socioeconômicos.[3] Sendo assim, o parcelamento e o pagamento da dívida tributária são formas de consecução dessa finalidade arrecadatória e, logo, devem repercutir na esfera penal.
Tanto o parcelamento quanto o pagamento da dívida são instrumentos de regularização fiscal, que não só possibilitam a arrecadação do valor do tributo pelo Estado, como também permitem que o indivíduo retorne à legalidade e retome a sua contribuição regular com a arrecadação tributária. Servem, portanto, como causas que condicionam a punibilidade dos suspeitos de terem praticado crimes tributários.[4]
Atualmente, os efeitos penais do parcelamento do débito tributário são regidos pelo artigo 83 da Lei 9.430/96. Segundo o §2º desse dispositivo, o processo penal que trate dos crimes de sonegação fiscal previstos nos artigos 1º e 2º da Lei 8.137/90 e dos delitos de sonegação de contribuição previdenciária ou apropriação indébita previdenciária (artigos 168-A e 337-A do Código Penal, respectivamente) fica suspenso durante o parcelamento do débito, período em que também fica suspenso o curso do prazo prescricional, se a renegociação for efetivada antes do recebimento da denúncia.
Todavia, o projeto de Código de Defesa do Contribuinte pretende alterar isso. Segundo o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, em seu artigo 57, o pedido de parcelamento do débito antes do recebimento da denúncia ainda suspenderá do processo penal que trate dos crimes referidos acima, bem como do crime de descaminho (artigo 334 do Código Penal) – cuja inclusão no rol de delitos sujeitos aos efeitos do parcelamento, necessário reconhecer, será uma inovação. Contudo, isso apenas será possível para agentes que não tenham sido condenados por delitos dessa espécie, e nem tenham denúncia recebida em seu desfavor, sobre esses crimes, referente a qualquer parte da dívida tributária parcelada (não raro, uma renegociação entre contribuinte e Fisco pode envolver diversos autos de infração fiscal, sendo que uns podem se encontrar com a persecução penal em estágio mais avançado do que outros).
Por sua vez, os efeitos do pagamento integral da dívida tributária para o processo penal estão dispostos, atualmente, no artigo 9º, §2º, da Lei n. 10.684/03. Quando se trata dos mencionados crimes de apropriação indébita previdenciária e de sonegação fiscal ou contribuição de previdenciária (a norma atual não abrange o delito de descaminho), o pagamento do débito extingue a punibilidade do indivíduo, independentemente do momento em que realizado.
No entanto, caso o PLC n. 17/2022 se torne Lei, o seu artigo 58 fará com que o pagamento do débito apenas cause a extinção da punibilidade dos delitos supracitados, bem como do de descaminho, se for feito antes da denúncia e por agente não reincidente nesses crimes. Se realizado antes da denúncia, mas por pessoa que seja reincidente nesses tipos penais, o pagamento somente acarretará a redução da pena pela metade.
Por outro lado, caso o acusado pague integralmente o débito ou ao menos 30% dessa quantia após o recebimento da denúncia, mas antes de proferida sentença condenatória, terá direito à redução da sua pena em 2/3. Se for reincidente nesses crimes, contudo, a sua pena somente será reduzida em 1/3. Vale ressaltar, por fim, que essas causas de diminuição de pena também se aplicam para condenados que, no momento da sentença, estejam parcelando ininterruptamente o débito há doze meses, a não ser que o tempo entre o oferecimento da denúncia e a sentença seja inferior a esse intervalo, situação na qual também há direito a essa redução de pena.
Da leitura comparativa entre as disposições atuais sobre os efeitos do parcelamento e do pagamento do débito tributário para o processo penal e aquelas projetadas pelo Código de Defesa do Contribuinte, fica evidente como essas últimas são mais prejudiciais ao acusado.
Sendo assim, disposições penais desse Projeto de Lei, inseridas no decorrer do seu trâmite na Câmara dos Deputados, vão na contramão do objetivo primordial: equilibrar a balança entre contribuinte – também imputado criminalmente – e Estado. Caso esse correto propósito fosse observado, nos depararíamos com dispositivos que ampliariam os benefícios penais, a fim de atrair acusados para a desejada regularização fiscal. Mas, como visto, não foi isso o que foi feito.
Salvo pela inclusão do crime de descaminho no regime penal do parcelamento e do pagamento da dívida tributária, e da criação de causa de diminuição da pena pela adesão ao parcelamento após o recebimento da denúncia, todas as alterações previstas por esse projeto tornam o parcelamento e o pagamento menos atrativo para quem esteja sendo acusado pela prática de crimes tributários, o que constitui um verdadeiro contrassenso.
Ora, se o que esses crimes salvaguardam é justamente a arrecadação tributária, o que interessa primordialmente, ao Estado, é o recebimento da quantia que não foi paga pelo contribuinte que está sendo acusado.[5] Assim, permitir que o indivíduo frua de benefícios penais quando regulariza a sua situação fiscal é um incentivo para que ele recolha o que deve, o que satisfaz tanto os seus próprios interesses individuais quanto os do Estado e, por via de consequência, da coletividade.
Porém, se a oferta de benefícios é reduzida, os incentivos para que ocorra a regularização fiscal também são diminuídos. Com isso, prejudica-se a arrecadação tributária, que justamente deveria ser protegida pelo direito penal tributário, na medida em que se dificultará a entrada de recursos nos cofres públicos, oriundos das renegociações desses contribuintes.
Nesse sentido, dispositivos que impedem a fruição dos benefícios penais do parcelamento e do pagamento do débito em razão da reincidência do agente ou do recebimento de uma denúncia não terão a função de barrar um tratamento brando para quem reiteradamente comete crimes tributários. O sonegador contumaz já não seria beneficiado pelos institutos de regularização fiscal, justamente porque a sua conduta padrão é não pagar imposto.
Reduzir os benefícios penais do parcelamento e do pagamento só servirá para afastar da regularização fiscal os contribuintes de quem o Estado tinha, mesmo, alguma chance de receber, perpetuando lesões que facilmente poderiam ser reparadas.
Ademais, revelam-se extremamente danosas as alterações que impedem a extinção da punibilidade em razão do pagamento do débito. Se o que se pretende, com a criação desses crimes, é proteger a arrecadação tributária, não tem qualquer sentido continuar a perseguir, criminalmente, quem já restituiu tudo o que devia aos cofres públicos. Aqui, sempre houve quem criticasse a extinção da punibilidade pelo pagamento, prevista para os crimes tributários, ao argumento simplista de que “não seria justo o rico empresário ter extinta a punibilidade pelo pagamento do tributo, quando o ladrão de galinhas não goza o mesmo benefício, ainda que pague pela galinha furtada”.
O que essa crítica não enxerga é que, ao contrário do furto ou dos demais crimes que tutelam diretamente bens jurídicos individuais – o patrimônio do dono da galinha, no exemplo acima – a arrecadação tributária é um bem jurídico supraindividual, de modo que um tratamento diferenciado, no que concerne aos efeitos da reparação do “dano” pelo pagamento, justifica-se pelo interesse coletivo maior, na recomposição do Erário com recursos que reverterão em benefício de toda a sociedade. Além disso, se o objetivo é diminuir a indesejada seletividade do sistema penal, a solução racional seria ampliar os mecanismos despenalizadores, e não o contrário, como fez o PLC n. 17/2022.
Portanto, pouco deveria importar qual o momento processual em que o pagamento seja feito. Se a lesão à arrecadação tributária já foi reparada, não há lógica em manter tramitando processo que trate desse crime. Isso apenas gerará mais despesas ao Estado, que além de não ver de volta os valores do imposto devido – já que não haverá estímulo para que o contribuinte regularize sua situação – terá que gastar ainda mais recursos com um processo, e quem sabe com uma execução penal caros e que não recomporão o interesse coletivo lesado, quando essa recomposição era possível, e até desejável.
Dessa forma, distinguir os efeitos do pagamento integral feito antes do recebimento da denúncia, daqueles da quitação realizada após essa decisão, é criar uma diferenciação sem qualquer razão concreta que a justifique. Afinal, ambos produzem os mesmos efeitos práticos: a completa restauração da lesão que motivou o início da persecução penal. Diferenciá-los, portanto, é diretamente violar o princípio da isonomia (artigo 5º da Constituição Federal).
O quadro acima descrito demonstra claramente como as disposições penais do projeto de Código de Defesa Contribuinte muito prejudicam o arguido, que é, ironicamente, o próprio contribuinte. Logo, são jabuticabas que vão contra o objetivo do Projeto, desvirtuando-o. Mas não é só.
Ao desincentivarem o indivíduo a buscar a sua regularização fiscal, igualmente prejudicam o Estado, pois dificultarão o aumento da arrecadação tributária e farão com que o Poder Público tenha que arcar com processos caros e que poderiam ter sido resolvidos de uma forma muito mais benéfica para todas as partes.
Isso fica ainda pior quando constatado que, se aprovado o Código de Defesa do Contribuinte no seu texto atual, essas disposições penais, muito pouco debatidas até agora, ingressão no ordenamento jurídico na forma de Lei Complementar. Consequentemente, será mais difícil alterá-las a fim de reparar os seus equívocos.
Diante disso, espera-se, agora, que o Senado Federal, na sua função de Casa Revisora, corrija os equívocos das disposições penais aprovadas pela Câmara dos Deputados, a fim de encontrar uma solução que privilegie tanto os interesses dos contribuintes acusados quanto do Estado, na busca pela maior arrecadação tributária possível, sem a prática de abusos contra o cidadão.
[1] Dessa forma, atendeu à exigência disposta no artigo 146, inciso III, da Constituição Federal.
[2] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar nº 17, de 10 de março de 2022. Estabelece normas gerais relativas a direitos, garantias e deveres do contribuinte, principalmente quanto a sua interação perante a Fazenda Pública e dispõe sobre critérios para a responsabilidade tributária. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2146627. Acesso em 08 de dezembro de 2022.
[3] SALOMÃO, Heloisa Estelitta. A tutela penal e as obrigações tributárias na constituição federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 133.
[4] BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 83.
[5] MACHADO, Tiziane; ARAGÃO, Carolina de. Sanções Penais Tributárias. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord). Sanções Penais Tributárias. São Paulo: Dialética; Fortaleza: Instituto Cearense de Estudos Tributários – ICET, 2005, p. 609.